quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O silêncio de Anderson



"Fui interrompida pelo silêncio da noite. O silêncio espaçoso me interrompe, me deixa o corpo num feixe de atenção intensa e muda. Fico à espreita de nada. O silêncio não é o vazio , é a plenitude."
Um sopro de vida de Clarice Lispector

Anderson:entre flores e palavras

Segunda-feira dia 18 de Janeiro de 2010, logo pela manhã recebi o telefonema de Marta Cesar comunicando o falecimento do dançarino Anderson João Gonçalves, ela ainda não sabia que horas seria o sepultamento.
Eu preparava o lanche da pequena Hannah para levar a praia... e tentava organizar o dia de celebração do seu aniversário. Em meu diário escrevi: celebração da vida que florece e da vida que desvanece. Meditei; na quietude do corpo desejei paz e uma passagem tranquila para o amigo que partia. Lembrei-me da dança compartilhada, durante a oficina de Contato que David Iannatelli ofereceu para nós no verão de 2000 ou 2001(datas, dificuldades com o Cronos, já escreverei sobre isso). E aí fomos fazer uma jam lá na beira-mar e eu e o Anderson fizemos um duo na sonoridade da Ave Maria interpretado por Bobby Mac Ferry: meu corpo lembrou.
Em meio dessas e outras memórias o tempo passou, a jornalista do Notícias do Dia telefonou perguntou o que eu poderia dizer acerca do Anderson e comentei que ele era uma inspiração para nós, sua amorosidade, seu corpo certeiro, lúdico, flexível conferia a ele uma maturidade corporal - e aí lembrei dos comentários de Sandra Meyer -enquanto assistiamos sua performance num espetáculo do Cena 11- que conhecia Anderson desde do tempo do Balé Desterro.Foi a partir daí que falei à jornalista do ND que considerava maravilhoso o desempenho corporal do Anderson, para quem estava perto da casa dos 50,pois neste mundo da dança que o bailarino ao chegar próximo dos 30 já pensa em mudar de carreira, nosso amigo fazia questão de provar o contrário e nos inspirava a ir além...
No sepultamento, segurei um vaso de crisântemos amarelos - ofertados por alguém ali presente - as flores, radiavam alegria, beleza e nos lembravam também que a vida é breve, nos despedimos dele com salva de palmas. "Show is over, say good bye" cantam: Madonna, a amiga Rosângela Matos, outras amigas, amigos, familiares em homenagem. Mas, ele se foi com seus sapatos vermelhos e passou sua cartola para seu amigo Alejandro Ahmed...
Naquela mesma tarde, minha pequena Hannah, acompanhada de amigas, amigos e familiares plantou flores, para celebrar mais um ano de vida, e filosofou ao ver o pequeno pé de hibisco sem flor - uma flor nasce e morre, outra flor nasce e morre. Concordei com ela. É assim mesmo a vida, mas enquanto a flor existe ela perfuma e embeleza o nosso jardim. Grata Anderson por sua bela e profunda existência entre nós.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Mas que celebrar, acolher em 500 caracteres

Mais que celebrar, acolher.
Por Ida Mara Freire

A 14a. exposição dos membros da Secessão realizada em 1902 em Viena, almejava uma versão ideal da arte moderna monumental e enfatizava o processo de criativo. O elo entre as proposições da Secessão e as dos artistas contemporâneos está no olhar do espectador. Tanto o corpo como mártir de Beethoven, as pinturas de Klimt, e a dança que criamos hoje continuam celebrando a diversidade humana e desafiando o público. A diferença se mantém em cena, no corpo e no discurso. O espectador é provocado a perceber para conhecer. Porém, exige-se uma ação muito além da celebração: o acolhimento da alteridade. Afinal, é impossível ser feliz sozinho!

Mas que celebrar, acolher em 500 palavras

Mais que celebrar, acolher.
Por Ida Mara Freire

Para responder esta pergunta vou ater-me à exposição do Friso Beethoven, localizado no subterrâneo do palácio da Secessão, em Viena e criado por Gustav Klimt como parte das obras expostas durante a 14a. Exposição dos membros da Secessão, realizada em 1902. O contexto era de decadência e efervescência política e cultural. Essa atmosfera propiciou a criação de uma associação intitulada de Secessão, interessada em respaldar as proposições dos novos artistas. Estes ofereceram à cidade, “um estilo diferente de evento”, planejada detalhadamente, a exposição buscava encontrar um modo ideal de apresentar a versão dos artistas da arte moderna monumental, e ao mesmo tempo, enfatizar de modo especial o processo de criação do trabalho artístico – tentando assim “aprender juntos”; desejando a harmonia co-existente entre arquitetura, pintura e escultura.

Mas se isso foi o almejado pelos secessionistas em 1902, até que ponto a contemporaneidade se vincula a esse projeto de cunho vanguardista? No meu entender, o elo entre as proposições da Secessão e as dos artistas contemporâneos está no olhar do espectador sobre o corpo. O corpo singular seja apresentado como um mártir, tal como foi Beethoven, e representado nas pinturas de Klimt, ou como ator/dançarino como vemos hoje em cena, continua celebrando a diversidade humana e desafiando o público. Ao escolher Ludwig van Beethoven como mártir, redentor da humanidade, Klimt e seus amigos, vê nele a corporificação do gênio e na sua obra exaltação do amor e do sacrifício capazes de salvar o homem. Tal atitude não só revela a veneração por esse artista, assim como uma busca de solução para as questões que Klimt, já fazia sobre o sentido da existência humana. Outro aspecto que merece nossa atenção trata da reação do público. Muito embora, a 14a. Exposição da Secessão consagrada à Beethoven tenha sido um grande sucesso, o Friso pintado por Klimt, foi visto como desafiante pelo público e a imprensa. Os quais avaliaram o friso como anêmico e rígido, além de considerarem os personagens repugnantes e indecentes. Essa distância nobre do espectador se constitui num obstáculo para que ele se reconcilie com ele próprio e a realidade. Atualmente, a diferença está em cena, no corpo, no discurso. O espectador é provocado a perceber para conhecer. Entrar em contato com o mundo. Essa experiência sugere elementos que assegure uma ação muito além da celebração: o acolhimento da alteridade. Afinal, como já cantou o poeta – é impossível ser feliz sozinho!



Foto de Sandra Meyer,
O texto Dança e Comunicação descreve essa experiência.

Dança e Comunicação

Dança e Comunicação
Por Ida Mara Freire (*)

Muitas vezes já presenciamos ou até já fizemos parte de um certo tipo de conversa em que duas pessoas estão conversando, mas nenhuma está ouvindo a outra. Mas também já testemunhamos algumas conversas nas quais ninguém diz nenhuma palavra e os envolvidos entendem perfeitamente tudo que está acontecendo. Qual será a base para uma comunicação verdadeira? O corpo. Sim, você já observou que é difícil mentir com o corpo. Talvez seja por isso que tentamos, em vão, camuflá-lo com roupas, perfumes, maquiagens, acessórios, tatuagens, cirurgias plásticas, etc. Mas o corpo fala. Com uma voz silenciosa, que diz tudo sem palavra alguma. Na tentativa de nos comunicarmos uns com os outros, uma necessidade se impõe, a saber, que devemos assumir responsabilidade entre o espaço que há entre o meu corpo e o de outrem. De certa forma, é a presença ou a ausência desse espaço corporal que vai determinar se a nossa comunicação é uma fonte de inspiração ou de intimidação. Neste texto proponho explorar como a experiência com a dança pode nos traduzir algumas lições de comunicação que o corpo nos ensina diariamente. Para isso, vou me pautar nas atividades de um curso e de uma oficina de dança e improvisação no início do mês de fevereiro. A organização foi feita por Ana Maria Alonso Krischke, com o apoio das professoras Sandra Meyer e Marisa Naspolini do CEART/UDESC.

Nosso corpo se move como nossa mente se move? As qualidades de qualquer movimento são as manifestações de como a mente é expressa através do corpo que está em movimento? As mudanças nas qualidades do movimento indicam que a mente mudou o foco sobre o corpo, ou seria o contrário: quando nós dirigimos a mente ou a atenção para diferentes áreas do corpo, e iniciamos o movimento a partir dessas áreas, nós mudamos a qualidade do nosso movimento? Seria o movimento um modo de observarmos a expressão da mente através do corpo, e isso também pode ser uma maneira de produzir mudanças na relação mente-corpo? Essas questões podem ser exploradas por qualquer interessado numa aprendizagem tanto experiencial como cognitiva dos sistemas do corpo humano, e talvez tenha sido isso que levou um grupo de pessoas a freqüentar os cursos de verão que aconteceram no CEART na UDESC, tendo como professores convidados Heike Kuhlmann e Ingo Rozenkranz, ambos de nacionalidade alemã.
A introdução ao Body-Mind Centering – BMC (Corpo-Mente Centralizados) pela improvisação de contato possibilita a exploração profunda do corpo através da dança. Ela abre novas perspectivas para o dançarino desenvolver seu trabalho técnico e de criação. Essa foi a proposta de um curso de cinco dias de Heike Kuhlmann, que ensina dança e movimento há doze anos, além de criar performances para adultos e crianças em Berlim. Formada em Educação Física e Dança, Heike possui Mestrado em Coreografia pela Universidade de Leeds, na Inglaterra, onde também incrementou sua formação em Body-Mind Centering BMC (Corpo e Mente centralizados) e Movimento Autêntico com Linda Hartley. Essa formação enriqueceu sua dança, dirigindo seu interesse para a expressão interior do corpo.
Conhecer o esqueleto, os músculos, a pele, os órgãos internos, a respiração, a vocalização; os sentidos e a dinâmica da percepção e o desenvolvimento do movimento tanto ontogenético como filogenético; e a arte do tocar e ser responsivo é a base do BMC. Embora cada um desses sistemas do corpo humano apresente separadamente suas próprias contribuições para o movimento corpo-mente, eles são todos interdependentes, juntos proporcionam uma completa rede de apoio e expressão e sustentação. O BMC está alicerçado em aproximadamente trinta anos de experiências de Bonnie Bainbridge Cohen e seus colaboradores e tem sido aplicado por pessoas de diferentes áreas, como a dança, atletismo, trabalho corporal, educação física, terapias da fala, do movimento, ocupacional, psicoterapia, medicina, desenvolvimento infantil, educação, arte visual e musical, ioga, artes marciais, meditação e outras disciplinas envolvendo corpo-mente. O desenvolvimento do movimento no sistema Body-Mind Centering é apresentado como um processo não linear, mas que ocorre através de ondas sobrepostas.
Nascemos para ser escolhidos, vivemos para escolher, escreve Mia Couto. A dança contemporânea, a partir de suas proposições, tais como sugeridas nesse curso oferecido por Heike, nos faz pensar nas escolhas. O ato de escolher é muitas vezes mais importante que a própria coisa escolhida. Quando não escolhemos, a vida escolhe por nós, e podemos vir a ser vítimas das circunstâncias. No entanto, escolher é uma decisão que deve ser tomada com cuidado, mais precisamente num tempo da delicadeza. Nas dinâmicas da percepção aprendemos que é através de nossos sentidos que recebemos informação de nosso ambiente interno e externo. Como filtramos, modificamos, distorcemos, aceitamos e rejeitamos essa informação é parte do ato de perceber. Tocar e movimentar são as primeiras ações para nos desenvolver. Elas estabelecem a linha de base para a percepção futura através do olfato, gustação, audição e visão. Pela exploração do processo perceptivo, podemos expandir nossas escolhas para responder a nós mesmos, aos outros e ao mundo no qual vivemos. Nossa respiração é influenciada pelo nosso estado fisiológico e psicológico e por fatores externos do nosso ambiente. A maneira pela qual respiramos também influencia nosso comportamento e funcionamento físico. No que diz respeito a nossa voz, através de suas qualidades expressivas, comunicamos para o mundo exterior quem nós somos. Nossa voz reflete o funcionamento de todos os sistemas do nosso corpo e o processo de integração do nosso desenvolvimento. Quando tocamos alguém, somos tocados igualmente. Isto é uma exploração da comunicação através do toque - a transmissão e a aceitação da fluência de energia dentro de nós mesmos e entre nós mesmos e os outros.
A oficina oferecida por Ingo Rozenkranz buscou desenvolver um trabalho corporal que visava nos guiar ao cerne de nosso corpo. Ingo é instrutor de improvisação e meditação. Em seus estudos no Departamento de Esportes da Universidade de Cologne, Alemanha, figuram o teatro físico, dança e teatro e a dança contemporânea. Além de seu interesse pelas filosofias orientais: Tai Chi, Qi Gong, Aikido, junto com Body-Mind Centering e Movimento Autêntico. Ele também colabora na organização do Eastimprofestival e do Healingheartfestival e atua como professor em vários festivais de improvisação e dança na Europa, Israel, Rússia, EUA e Japão.
A oficina que ministrou, intitulada Corpos Sensíveis, teve a duração de dois dias. No transcorrer das atividades Ingo intencionou que nós, participantes, aprendêssemos a observar e ler a nós mesmos e aos outros. Explorássemos as interações e possibilidades dessa escuta. Voltássemo-nos para o pequeno e o possível como sendo necessários para perceber nossas necessidades, buscarmos o prazer em nos movermos, abrindo espaço para que todos pudessem existir. Desfrutar de momentos de meditação e cura integrados aos princípios vindos de diferentes abordagens do Contato e Improvisação e da Dança . Enfim, ao movermos nossos corpos e termos conhecimento de como isso se dá, estamos a um passo de nos ajudar e de nos entregar ao movimento, de modo que fiquemos mais presentes tanto na dança como no encontro com outro.
O Contato e Improvisação, como proposta de uma dança, foi criado por Steve Paxton e é definida como um processo criativo que ocorre quando duas ou mais pessoas se movimentam com apoio mútuo e jogam com a mudança de equilíbrio coletivo. É influenciada por técnicas da dança moderna e por componentes de acrobacia, tendo seus próprios princípios característicos de movimento. Como se destina à relação entre o esqueleto, a musculatura e os reflexos, tal proposta também atenta para as interações entre corpo perceptivo e organismo corpo-mente. Através da experiência direta e da percepção da dança podem-se conhecer novos caminhos que nos ponham em contato conosco mesmos e com o nosso ambiente. O ponto principal desse sistema é simplesmente o prazer de nos movimentar e de usar o nosso corpo. É o prazer de dançar com alguém de um modo não planejado e espontaneamente, em que cada pessoa está livre para inventar, sem estorvar a outra. Resumidamente, as qualidades do movimento valorizadas no contato e improvisação são a geração de movimento através de pontos mutáveis de contato entre os corpos; sensibilidade através da pele; rolar através do corpo, focalizando o segmento do corpo e movendo-se em diferentes direções simultaneamente; experimentar o movimento a partir do espaço interno; usar o espaço 360º; ir no impulso, enfatizando a fluência e o peso. Durante uma apresentação há inclusão tácita da platéia acompanhada de informalidade consciente de apresentação, modelada sobre uma prática ou jam; o dançarino é apenas uma pessoa entre outras e deixa a dança acontecer por si só; nesse contexto todos são igualmente importantes.
Essas experiências possibilitam apresentar o corpo como base para uma comunicação responsável. Nesse sentido, minha responsabilidade para com outrem é a estrutura fundamental sobre a qual todas as outras estruturas sociais são acolhidas. A dança como uma tradução da comunicação corporal não está dispensada da ética. Nós sempre dançamos com o outro ou para o outro, nós nunca dançamos sozinhos. Dança não é uma uma atividades solitária, mas um movimento solidário. Vale salientar que dançar é a tentativa de ser um com outro. O espaço da dança como estrutura coletiva sustenta a noção de acolhimento e hospitalidade. Improvisar no contato é criar uma dança experimental. Aqui a noção do experimental de Hélio Oiticica se faz valer: “... a palavra ‘experimental’ é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso ou fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido. O que foi determinado?” Esse desconhecimento nos abre para as possibilidades da dimensão estética ou perceptiva, que propõe uma ruptura com o hábito. Supomos que a experiência da dança que acolhe outrem seja uma revelação de um modo não habitual de estar no mundo. Buscamos no corpo que dança uma comunicação livre, honesta e afetuosa com o mundo que o enreda.
(*) Professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC