sábado, 1 de junho de 2013

Corpos transbordantes de água e ar



Espetáculo "Transborda"/ Foto: Cristiano Prim
Corpos transbordantes de água e ar[1]

“É sempre bom lembrar que um corpo está cheio de ar.” Altero a canção de Gilberto Gil para comentar os espetáculos de dança “Transborda” de Valeska Figueiredo, na noite de terça dia 28 e o “Um banho de Água Fria” de Elke Siedler, no fim de tarde de quarta dia 29, apresentados no Múltipla Dança.
Espetáculo: "Um banho de água fria"/Foto: Cristiano Prim 


Valeska Figueiredo explora a sensação de não se conter às experiências circunscritas no cotidiano.  Investiga o cheio e o vazio de si convidando o espectador a respirar junto,  gestar um gesto sustentado pelo  som e pela  luz. A sonoridade criada por Rogério Almeida favorece  perceber com nitidez  o rastro do deslocamento sonoro vibrante e descontínuo. A luz de Irani Apolinário desenha com a sombra um cenário imaginário.  Sutileza.  Uma atenção delicada é o que se vai exigir do espectador.  Procurar no corpo o caminho percorrido pelo ar inalado.  Atentar para o que não é dito, mas é dado  pela expressão facial, pelos gestos, pelos movimentos do corpo, pela voz que surge do ato de respirar.

Fiona Ross, pesquisadora sul-africana, observa a inter-relação entre as palavras e o silêncio, e constata como um pensamento criativo diante daquilo que se vê e se ouve contribui para novos modos de lidar com o conflito e a diferença.

Enquanto  conversávamos no calçadão da Felipe Schmidt, demoramos alguns segundos para percebemos a ocupação silenciosa da dançarina Elke Siedler e de Thiago Schmitz. Sua performance  leva para o meio da rua as incertezas presentes nas relações interpessoais. A vulnerabilidade e a falta de controle vividas intimamente entre quatro paredes são expostas a todos que ousam parar um minuto para ver aquela que trajava um vestido preto com rendas e de alças, e seus pés calçados  com uma sandália de salto alto e fino, que desafiavam sorrateiramente a gravidade, o esmalte vermelho das unhas se destacam tanto nos pés como nas mãos. A cabeça era coberta com um capuz de couro preto, com orifícios nos olhos, nariz e boca. As pessoas passavam, olhavam, aproximavam, se afastavam. Chegam até comentar o uso da água e do dinheiro público. Uma menina  buscava entender com seu olhar sincero o drama ali proposto pelo casal, manifesto na  ausência de  comunicação.   Na hora do banho,  escuto comentário: “mas não estão jogando água  nela? Ah, agora estão”; Olho o balde de água sendo jogado no corpo da dançarina encharcado. Presenciar  “Um banho de água fria” ali no calçadão, faz pensar que a negação da dor do outro não é uma falha intelectual, mas uma falha na sensibilidade.

Espetáculos como os de Valeska e de Elke podem nos auxiliar a exercitar a atenção  sensível e habitar o próprio constrangimento de testemunhar a dor do outro. Perceber como o ato de constranger e ser constrangido  opera na constituição da nossa própria fala e também do nosso silêncio. Atentar é um ato sutil e delicado.  Pode ser um esforço profundo compreender  a si mesmo e essas  pessoas  que dançam num palco sem cenário  ou no calçadão da Felipe Schmidt.  Eis o exercício de transbordamento ofertado pela alteridade, que  aprofunda a noção de  empatia, pois não exige que calcemos os sapatos do outro, mas que fiquemos descalços em sua presença.
Publicado no Notícias do Dia em 31 de maio de 2013




[1] Ida Mara Freire
Professora associada do Centro de Ciências da Educação da UFSC
Pós-doutorado em dança pela University of Cape Town, África do Sul

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