v. 28, n. 1 (2010): Dossiê - Educação e Diversidade Étnico-Racial
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0 Dossiê Educaçao e Diversidade Etnico-Racial, organizado pelas professoras Beleni Saléte Grando, da Universidade do Estado de Mato Grosso, e Vânia Beatriz Monteiro da Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina, materializa um dos projetos desenvolvidos a partir do Programa de Cooperacao Académica — Procad-Amazônia. 0 programa tem por objetivo o intercâmbio entre pesquisadoras e pesquisadores das duas instituiçôes, buscando qualificar suas pesquisas e de seus orientandos, contribuindo, assim, para a formaçâo nos seus respectivos programas de pós-graduaçâo em Educaçâo.
A proposta do Dossié foi reunir pesquisas desenvolvidas na temática “Educaçâo e diversidade étnico-racial” de diferentes regiôes do PaIs e de outros paIses americanos, visando a contribuir para a discussâo no campo académico. 0 pressuposto orientador é de que as experiéncias sociais revelam determinadas condiçôes e relaçôes de poder marcadas pela exclusâo por condiçôes étnico-raciais ou maiorias empobrecidas das nossas sociedades ocidentalizadas, onde impera o poder colonizador que, na escola, homogeneIza os saberes para hierarquizar os poderes.
Compreendemos que a funçâo socializadora dos estudos desenvolvidos no âmbito da Educaçâo no Brasil ganha especial significado quando seus objetos pautam elementos inscritos nas interaçôes sociais, refletindo processos ou mesmo as resultantes de distinçôes ou valoraçôes que posicionam sujeitos e suas produçôes histórico-culturais. As décadas em que se inicia o século XXI sâo palco de um formidável movimento académico e polItico-cultural em que aqueles elementos sâo perscrutados incessantemente pela pesquisa, pelo compartilhamento do debate em fóruns os mais diversos, como também por constituIrem polIticas sociais.
Neste contexto, apresenta-se para as universidades páblicas uma oportunidade Impar para compartilhar o debate crItico acerca dos preconceitos presentes em diferentes cenários sociais, urbanos ou rurais, comunitários, universitários, escolares, enfim, os contextos sociais em que se projeta sobre pessoas e/ou grupos a exclusâo de processos sociais relevantes para sua educaçâo. Por certo que tal exclusâo se realiza por uma
dinâmica complexa, muitas vezes sutil, na forma de obstáculos, interdiçôes como na criaçâo de um universo simbólico que mobiliza e sustenta padrôes determinados.
Os marcadores sociais podem variar entre a cor de pele, o repertório lingulstico, a escolaridade, condiçâo como ser mulher, criança, ser trabalhador, enfim, por suas formas diversas de ser.
O artigo de Joselina da Silva, do Nordeste brasileiro, responsável pela obra 0 Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justica social no Brasil (2009), propôe uma análise sobre a participaçâo das mulheres negras no ensino universitário, apoiando-se nos indicadores Sinaes/INEP, revelando uma imensa desigualdade de oportunidades pela ótica das dimensôes de género e étnico-raciais no Ensino Superior. Seu artigo “Doutoras professoras negras: o que nos dizem os indicadores oficiais” instiga a refletir sobre uma histórica exclusâo evidenciada até 2005.
Com Maria Lácia Rodrigues Muller, do Centro-Oeste, vem 0 registro da cor em requerimentos para concursos de professores, a origem racial dos professores que acessam o magistério páblico na Primeira Repáblica, no Rio de Janeiro, entâo capital do Pals, com o branqueamento que vai se consolidando no magistério do Distrito Federal. Seu texto discorre sobre como a cor da pele, um atributo biológico, assume um conteádo cultural, social e moral no Brasil e exclui mulheres negras da carreira do magistério.
Do Norte, Wilma de Nazaré Bala Coelho faz uma análise sobre a teoria da igualdade de Ronald Dworkin, com o texto A experiência estadunidense das açóes afirmativas: uma análise a luz da teoria da igualdade de Ronald Dworkin, discutindo as açôes afirmativas estadunidenses a luz desta teoria que se coloca contrária a qualquer polltica compensatória em relaçâo a direitos de uma “raça em relaçâo a outra”. Partindo da realidade dos Estados Unidos, desvela os entremeios do sistema de cotas para a Educaçâo Superior e afirma que, para transformar a situaçâo de desigualdade existente historicamente dos afrodescendentes, devem-se pensar mudanças estruturais no seio da própria sociedade.
Com a leitura do texto do professor estadunidense Warren Hope, intitulado Negando igualdade de oportunidades educacionais: foco no monitoramento de habilidades na Educaçao Especial, somos levados a reconhecer como os afro-americanos foram sendo discriminados e
excluIdos dos bancos escolares pela segregacâo, pelo monitoramento e, mais recentemente, pela Educacâo Especial. Como afirma o autor, os cursos que lhes sâo ofertados sâo os “que nâo levam a lugar algum”, prendendo-os em “classes de baixo nIvel através do monitoramento de habilidades e da Educacâo Especial”. Sua proposta é uma reforma educacional que garanta currIculos que eliminam o impacto negativo desta história enraizada na vida dos afro-americanos.
Ida Mara Freire, do Sul do Brasil, nos faz pensar sobre a educacâo como igualdade de direito na diferenca, com seu texto Entre o pensar e o conhecer: um lugar para a diferença na formaçao de professores. Traz o “juIzo etico”, com filósofos contemporâneos, para discutir as acôes afirmativas, mas, mais que isso, os direitos de todas as criancas a oportunidades iguais como direito humano.
De Mato Grosso, Jlma Ferreira Machado nos traz o campo para pensarmos a diversidade e a educacao brasileira. Em seu texto Educaçao do campo e diversidade, reafirma o tratamento discriminatório das polIticas páblicas voltadas ao campo, que negam o protagonismo e a autonomia dos homens e mulheres que, em sua realidade local, com seus saberes e práticas, empreendem projetos “polItico-sociais e pedagógicos que contemplem as especificidades”, em diálogo com o “saber universal”, superando “a polarizacao campo-cidade”.
Zayda Sierra contribui com o resultado de dez anos de estudos com o Grupo de Jnvestigación Diverser, da Facultad de Educación, na Universidad de Antioquia, MedellIn (Colombia), sobre as PedagogIas desde la diversidad cultural: una invitación a la investigación colaborativa intercultural. Discute o vInculo existente entre o colonialismo e a modernidade para manter as diferentes violéncias (economica, epistémica, etnica, de género, social e existencial) que excluem grande parte da populacao colombiana, especialmente os indIgenas e afro-descendentes. Na exposicao, propôe a escola o rompimento com o imaginário colonial que nega a vida cotidiana destas pessoas e populacao, e a construcao de forma colaborativa com estas, reconhecendo e construindo pedagogias que “coexistem” no contexto latino-americano e que podem ser consolidadas em projetos de formacao de professores de forma intercultural, visando a uma “existéncia num planeta justo, equitativo e em equilIbrio com a natureza”.
A pesquisadora Eliane Debus oferece-nos uma importante discussao sobre as questóes étnico-raciais e a educacao, com uma análise critica sobre a literatura atualmente disponivel para o trabalho sobre a questao racial com criancas nas escolas brasileiras. No texto Meninos e meninas negras na literatura infantil brasileira: (des)velando preconceitos, analisa várias obras de autores que, na tentativa de tematizarem as questóes étnico-raciais, desvelam preconceitos na producao dos textos, seja na escolha dos titulos, seja nas ilustracóes ou na caracterizacao dos personagens. Com isso, enfatiza que há ainda muito a ser feito para que nas escolas possamos ter materiais que subsidiem de fato os professores, mas, especialmente, nos leva a refletir sobre como o preconceito está enraizado na cultura brasileira e o quanto, a partir da consciéncia das relacóes de poder que se estabelecem entre os “donos dos saberes” e os alunos, podemos nos revelar preconceituosos e excludentes das diferentes formas de pensar, de sentir, de ser, para além da cor da pele e da classe social, mas que estas duas variantes sao, necessariamente, inegáveis nas relacóes sociais atuais.
lntegra a coletânea a inspiradora entrevista Negros e educaçao no Brasil — uma entrevista com o coraçao de uma militante académica da professora dra. lolanda de Oliveira, da Faculdade de Educacao da Universidade Federal Fluminense, que nos brinda com sua história, entrelacando-a a história das politicas de acóes afirmativas no Brasil, ao mesmo tempo em que, como mulher negra, no Rio de Janeiro, mantém-se no exercicio do magistério e passa a ser uma das raras doutoras (negras) presentes na universidade. Mae de dois filhos, a frente da subsisténcia de si e dos meninos, um deles, de nome Nelson Mandela, guarda solenemente a foto do lider sul-africano com seu pequeno Mandelinha em 1991, quando de sua passagem no Brasil em 1991.
Suas memórias realcam a identificacao da universidade páblica como espaco decisivo para uma boa formacao, o que lhe custou esforco pela própria habilitacao em Pedagogia (UFF/1968) em turno noturno, em periodo em que a ditadura militar fustigava o ensino académico. Com as interpelacóes sofridas nos espacos do movimento social negro, demandando-lhe militância social, dra. lolanda conta seus dilemas sobre como inscrever em suas acóes académicas uma forca e legitimidade que via naquele movimento, como também como responder a “uma divida com nosso povo negro”. As exigéncias que se colocaram em combinar sua condicao de mae, chefe
de famIlia e docente universitária, respondeu com: “A militância pode ser académica! Eu you conciliar a militância com as minhas 40 horas, com a militância no interior da uniyersidade”. Uma presenca inspiradora neste Dossié, pela construçâo como académica, em que se inscrevem todas as iniciativas que tornaram a primeira década do século XXI um perlodo de lmpar mobilizaçâo académica e de constituicâo da agenda polItico-cultural sobre relacoes raciais e os negros na educacâo brasileira.
Com as presentes contribuicoes, trazemos alguns dos debates atuais sobre as polIticas de afirmacâo étnico-racial, a partir de dados históricos e documentos oficiais sobre a presença e auséncia da mulher negra na educaçâo e no espaço universitário, assim como as aparentes afirmaçoes étnico-raciais presentes na recente literatura infantil, mas também a diversidade e os direitos negados em contextos marginalizados em relacâo aos padroes culturais hegemônicos que definem como padrâo idealizado a cultura urbana, branca e eurocéntrica em toda a América. Reiteramos, pois, por meio desta publicacâo, a responsabilidade da universidade páblica com a formacâo dos profissionais da educacâo, na perspectiva de instigar e instrumentalizar a reflexâo sobre processos sociais implicados com uma educacâo emancipatória.
Florianópolis, junho de 2010.
Beleni Saléte Grando
Vânia Beatriz Monteiro da Silva
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