sábado, 27 de setembro de 2014

Compassos da Memória

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Foto de Josiane Lira

Ida Mara Freire
Publicado no Jornal Notícias do Dia 26/09/2014
A 4ª Semana Flamenca de Florianópolis, coordenada por  Carol Ferrari,  ocorreu de 08 a 14 setembro, o público participou das aulas de cajón, guitarra, castanholas, mantón, baile,  ministradas por profissionais de outros estados e países. De certo modo, as atividades possibilitaram reconhecer a memória da arte flamenca manifesta em cada gesto bailado. Pois, no flamenco cantar e dançar um palo é uma forma de fazer história,  observa Selma Treviños, trata-se de uma ferramenta para animar o passado ou uma “escrita” acerca de algo que já foi feito. Contudo, o que foi esquecido, ao contrário de ser ausência de algo que não está mais lá, pode ser a presença esquecida de algo que já esteve ali. 

No sapateado da dança flamenca, por exemplo, o colocar-se e o deslocar-se são movimentos primordiais que fazem do lugar algo a ser buscado em cada compás bailado.  Faz lembrar a repetição como a  energia que torna o baile possível.  Na busca de  interiorizar a canção, o cante, a palavra que se diz em voz baixa,  as bailoras  expressam a necessidade espiritual de comunicar tanto para si como para o outro, o modo de sentir a alegria e o sofrimento da vida  cotidiana. No palco,  elas deixam transparecer como os movimentos corporais são  feitos de fora para o interior, movimentos fechados, repetidos que, às vezes   confessam uma luta vã. Cada palo caracteriza-se em gestos diversos ora esguio feito torres ora em  torções que rebitam o corpo para o chão, como descreve Corinne Savy.

Na noite  de encerramento, no Espaço Sol da Terra, o espetáculo TABLAO inicia-se com as patadas de tangos,  ritmo  rico e versátil da Andaluzia, compasso quaternário bem marcado e o cante alegre e festeiro tecem  memórias que são ao mesmo tempo  íntimas e compartilhadas entre as bailaoras, o cantaor, o guitarrista e a plateia. A soleá, abreviatura cigana de soledad (solidão), interpretada por Chari Gonzalez,  conduz o espectador e a espectadora para um ambiente de relembrança intercorporal, fragmento de uma terra silenciosamente habitável.   Carol Ferrari baila alegrías, cante de festa, exteriorização de uma alegria em suas  trilhas e  obstáculos interiores. Na guitarra Jony Gonçalves e o cantor Ozir Padilha apresentam  fandangos, caracterizados por movimentos vivos e agitados. A siguiriya, bailada por Ana Paula Campoy,  de natureza profundamente emotiva, faz a plateia sentir  momentaneamente a desesperança e a crueldade do mundo.  Yara Castro baila uma soleá por bulería, ritmo com tonalidade mestiça  que evidencia no corpo o caminho musical.  O espetáculo vai  se fechando com a vivacidade das populares sevillanas  e a festividade das patadas por bulería, nesse palo rápido, o elenco têm a oportunidade de expor  a intensa memória corporal, alicerçada na obstinada e paciente repetição, potência criadora que reabre no corpo  um espaço do passado para se viver no futuro.

O espetáculo TABLAO mostrou, para quem foi ver e ouvir, como na herança do flamenco descobre-se que  o nosso lugar no mundo é ali onde está o nosso corpo.  No final desse  compás  a plateia ritmicamente  agradecida exclamou: Olé!

Email: Ida.mara.freire@ufsc.br  (*) Professora Associada do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Realizou pós-doutorado em dança na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Solos de Silêncio

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Vestígios do Silêncio
Ida Mara Freire

Existe muita coisa dentro do silêncio, descobrem Camila Miranda e Meline Costa, intérpretes criadoras do espetáculo Solos de Silêncio, apresentado  dia 05 de setembro na Casa das Máquinas , contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle.
 
Foto de August Murad
Em cena as mãos das dançarinas tateiam a terra. A menina espectadora analisa a composição do solo ali exposto: seria argila, areia, silte... Solo. 1. Superfície sólida da crosta terrestre onde pisamos e construímos; 2. Bailado executado por um só dançarino; 3. Primeiro voo que o aluno de pilotagem faz sozinho, desacompanhado do instrutor. Escavo o solo silenciosamente a procura de palavras ainda vivas. 

Como escavar o movimento  criativo   e os modos de reconstrução do espaço para lidar com o conflito e a diferença numa dimensão dual? Ao colaborar com a pesquisa do espetáculo Diana Gilardenghi atualiza o papel do coreógrafo como aquele que  pergunta,  ouve atentamente e divide a responsabilidade com o outro. Esmera-se em atentar para o que não é dito, mas é dado  pela expressão facial, os gestos e a linguagem corporal, busca  com isso a inter-relação entre gestos e silêncio.

Mas os dois corpos, vestidos por Alice  Assal,  resistem ora calçados com suas botas ora com os pés livres na terra. Insistem e transbordam além das linhas e formas de um sistema complexo onde incessantemente vivem organizações, inércias, desorganizações e processos caóticos. Ao redor do tecido pendente do teto ao chão, tecem com o público a veracidade  das tramas que exacerbam o fato de que estamos a todo momento construindo e reconstruindo aquilo que somos e buscamos  ao ser e  ao estar com o outro.

O silêncio no corpo é contenção, afina assertivamente a  sonoridade de  Jorge Linemburg. É assumir a cadência de uma trilha interior. A música  anuncia um outro destino. Pausa, para mover-se para outra direção. Uma  dança que  vem do chão, iluminada rasteiramente por Marcello Serra, luminosidade que rastreia  o tropeço e demarca o estilhaço de ser um em dois. No mover-se na horizontal,  acompanha-me  André  Lepecki, estudioso desse corpo que abraça  a horizontalidade só por um momento ou  para o resto da vida. Os Solos de silêncio desafiam a plateia a explorar a temporalidade  daquilo que se ganha  quando se perde verticalidade, e do que  se alcança quando se ganha horizontalidade. 

“Num campo de silêncio, onde pastam manhãs, estou pelo que sou” as palavras de   Thiago de Mello revelam os vestígios desse espetáculo que corrompe as estruturas inertes com uma obstinada sensibilidade, convidando o leitor e a leitora enraizarem a coexistência no solo do coração.

Email:  ida.mara.freire@ufsc.br
(*) Professora Associada do Centro de Ciências da Educação da UFSC, pós-doutorado em dança Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul.