Foto de Josiane Lira |
Ida
Mara Freire
Publicado
no Jornal Notícias do Dia 26/09/2014
A 4ª Semana Flamenca de Florianópolis, coordenada
por Carol Ferrari, ocorreu de 08 a 14 setembro, o público participou
das aulas de cajón, guitarra,
castanholas, mantón, baile, ministradas por profissionais de outros
estados e países. De certo modo, as atividades possibilitaram reconhecer a
memória da arte flamenca manifesta em cada gesto bailado. Pois, no
flamenco cantar e dançar um palo é
uma forma de fazer história, observa Selma
Treviños, trata-se de uma ferramenta para animar o passado ou uma “escrita”
acerca de algo que já foi feito. Contudo, o que foi esquecido, ao contrário de
ser ausência de algo que não está mais lá, pode ser a presença esquecida de
algo que já esteve ali.
No
sapateado da dança flamenca, por exemplo, o colocar-se e o deslocar-se são
movimentos primordiais que fazem do lugar algo a ser buscado em cada compás bailado. Faz lembrar a repetição como a energia que torna o baile possível. Na busca de interiorizar a canção, o cante, a palavra que se diz em voz baixa, as
bailoras expressam a necessidade
espiritual de comunicar tanto para si como para o outro, o modo de sentir a
alegria e o sofrimento da vida
cotidiana. No palco, elas deixam
transparecer como os movimentos corporais são
feitos de fora para o interior, movimentos fechados, repetidos que, às
vezes confessam uma luta vã. Cada palo caracteriza-se em gestos diversos
ora esguio feito torres ora em torções
que rebitam o corpo para o chão, como descreve Corinne Savy.
Na
noite de encerramento, no Espaço Sol da
Terra, o espetáculo TABLAO inicia-se com as patadas de tangos, ritmo rico e versátil da Andaluzia, compasso
quaternário bem marcado e o cante alegre
e festeiro tecem memórias que são ao
mesmo tempo íntimas e compartilhadas entre
as bailaoras, o cantaor, o guitarrista e a plateia. A
soleá, abreviatura cigana de soledad (solidão), interpretada por Chari Gonzalez, conduz o espectador e a espectadora para
um ambiente de relembrança intercorporal, fragmento de uma terra
silenciosamente habitável. Carol Ferrari baila alegrías, cante de festa, exteriorização de uma alegria em
suas trilhas e obstáculos interiores. Na guitarra Jony Gonçalves e o
cantor Ozir Padilha apresentam fandangos, caracterizados
por movimentos vivos e agitados. A siguiriya, bailada por Ana Paula Campoy,
de natureza profundamente emotiva,
faz a plateia sentir momentaneamente a
desesperança e a crueldade do mundo. Yara Castro baila uma soleá por bulería, ritmo com tonalidade mestiça que evidencia no corpo o caminho musical. O espetáculo
vai se fechando com a vivacidade das populares
sevillanas e a festividade das patadas por bulería, nesse palo rápido, o elenco têm a oportunidade
de expor a intensa memória corporal,
alicerçada na obstinada e paciente repetição, potência criadora que reabre no
corpo um espaço do passado para se viver
no futuro.
O espetáculo TABLAO mostrou, para quem foi ver e ouvir,
como na herança do flamenco descobre-se que o nosso lugar no mundo é ali onde está o nosso
corpo. No final desse compás a plateia ritmicamente agradecida exclamou: Olé!
Email:
Ida.mara.freire@ufsc.br (*) Professora Associada do Centro de
Ciências da Educação da UFSC. Realizou pós-doutorado em dança na Universidade
da Cidade do Cabo, África do Sul.
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