Vestígios do
Silêncio
Ida Mara Freire
Existe muita coisa dentro do silêncio, descobrem Camila Miranda e
Meline Costa, intérpretes criadoras do espetáculo Solos de Silêncio,
apresentado dia 05 de setembro na Casa
das Máquinas , contemplado com o Prêmio Elisabete Anderle.
Em cena as mãos das
dançarinas tateiam a terra. A menina espectadora analisa a composição do solo
ali exposto: seria argila, areia, silte... Solo. 1. Superfície sólida da crosta
terrestre onde pisamos e construímos; 2. Bailado executado por um só dançarino;
3. Primeiro voo que o aluno de pilotagem faz sozinho, desacompanhado do instrutor.
Escavo o solo silenciosamente a procura de palavras ainda vivas.
Como escavar o
movimento criativo e os modos de reconstrução do espaço para
lidar com o conflito e a diferença numa dimensão dual? Ao colaborar com a
pesquisa do espetáculo Diana Gilardenghi atualiza o
papel do coreógrafo como aquele que pergunta, ouve atentamente e divide a responsabilidade
com o outro. Esmera-se em atentar
para o que não é dito, mas é dado pela
expressão facial, os gestos e a linguagem corporal, busca com isso a inter-relação entre gestos e
silêncio.
Mas os dois corpos, vestidos por Alice Assal,
resistem ora calçados com suas botas ora com os pés livres na terra. Insistem
e transbordam além das linhas e formas de um sistema complexo onde
incessantemente vivem organizações, inércias, desorganizações e processos
caóticos. Ao redor do tecido pendente do teto ao chão, tecem com o público a
veracidade das tramas que exacerbam o
fato de que estamos a todo momento construindo e reconstruindo aquilo que somos
e buscamos ao ser e ao estar com o outro.
O silêncio no corpo é
contenção, afina assertivamente a sonoridade de Jorge
Linemburg. É
assumir a cadência de uma trilha interior. A música anuncia um outro destino. Pausa, para
mover-se para outra direção. Uma dança
que vem do chão, iluminada rasteiramente
por Marcello Serra, luminosidade que rastreia o tropeço e demarca o estilhaço de ser um em
dois. No mover-se na horizontal,
acompanha-me André Lepecki, estudioso desse corpo que
abraça a horizontalidade só por um
momento ou para o resto da vida. Os Solos
de silêncio desafiam a plateia a explorar a temporalidade daquilo que se ganha quando se perde verticalidade, e do que se alcança quando se ganha
horizontalidade.
“Num campo de silêncio,
onde pastam manhãs, estou pelo que sou” as palavras de Thiago de Mello revelam os vestígios desse
espetáculo que corrompe as estruturas inertes com uma obstinada sensibilidade,
convidando o leitor e a leitora enraizarem a coexistência no solo do coração.
Email: ida.mara.freire@ufsc.br
(*) Professora Associada do
Centro de Ciências da Educação da UFSC, pós-doutorado em dança Universidade da
Cidade do Cabo, África do Sul.
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