quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Fragmentos

Fragmentos de um gesto
Por Ida Mara Freire (*)

“Saber que não escrevemos para o outro, saber que essas coisas que vou escrever jamais me farão amado de quem amo, saber que a escrita não compensa nada, não sublima nada, que ela esta precisamente ali onde você não está – é o começo da escrita.” Os fragmentos do discurso amoroso de Barthes parecem-me oportunos para introduzir meus comentários acerca do espetáculo “Meu Prazer” dirigido por Marcia Milhazes, apresentado na noite de quarta-feira no Múltipla Dança. Os bailarinos Al Crisppinn, Ana Amélia Vianna, Felipe Padilha e Fernanda Reis escrevem cartas de amor gestuais que revelam desejos de proximidade e intimidade. A solidão se espessa quando aquilo que nos é intimo está certo de se alcançar, contudo um gesto estrangeiro nos faz duvidar e põe fim na estória antes mesmo dessa começar.

O cenário, criação de Beatriz Milhazes, é um jardim de flores agigantadas que subverte o espaço e acolhe os movimentos de suspensão. O expectador é convidado adentrar neste pequeno universo, perceber como seu o frêmito do corpo da dançarina e surpreso constatar uma esquisita alegria. O gesto do outro nos aproxima, porém sem intimidade. São como os grandes círculos vazados, lembrando-nos dos espaços vazios ao nosso redor. Pode a textura, a cor de uma vestimenta tecer intuições? Demonstrar leveza, transparência, maleabilidade e com isso demarcar semelhanças e distinções nas tramas e nos dramas existenciais de cada um?

A iluminação de Glauce Milhazes endereça a mensagem. Se plena, denuncia que andamos a procura do desconhecido. Generosa, nos permite perceber o aqui e o agora. Convergente, irradia o só ser e o seu reverso: o ser só. A sonoridade de Francisco Alves, as composições de Francisco Mignone, Henrique Oswald, Ernesto Nazareth e Maria Kalaniemi, prenhas de sentidos nos constrange admitir as ausências. O silêncio intimida ao desnudar nossa presença no simples ato de respirar.

O espetáculo da Marcia Milhazes Companhia de Dança pode ser lido como uma carta que deseja, como toda a mensagem de amor, uma resposta. E assim, diante dessa imposição implícita o outro responde. Como expectadora, talvez seja essa minha simples notação uma retribuição, porém reconheço de antemão que o amor pode estar precisamente ali onde não parece por inteiro, mas apenas num fragmento de um gesto... amoroso.



(*) Professora e dançarina
idamara@ced.ufsc.br

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