Espetáculo "Transborda"/ Foto: Cristiano Prim |
Corpos transbordantes de água e ar[1]
“É sempre bom lembrar que um corpo
está cheio de ar.” Altero a canção de Gilberto Gil para comentar os espetáculos
de dança “Transborda” de Valeska Figueiredo, na noite de terça dia 28 e o “Um
banho de Água Fria” de Elke Siedler, no fim de tarde de quarta dia 29, apresentados
no Múltipla Dança.
Espetáculo: "Um banho de água fria"/Foto: Cristiano Prim |
Valeska Figueiredo explora a
sensação de não se conter às experiências circunscritas no cotidiano. Investiga o cheio e o vazio de si convidando
o espectador a respirar junto, gestar um
gesto sustentado pelo som e pela luz. A sonoridade criada por Rogério Almeida
favorece perceber com nitidez o rastro do deslocamento sonoro vibrante e
descontínuo. A luz de Irani Apolinário desenha com a sombra um cenário imaginário. Sutileza.
Uma atenção delicada é o que se vai exigir do espectador. Procurar no corpo o caminho percorrido pelo
ar inalado. Atentar para o que não é
dito, mas é dado pela expressão
facial, pelos gestos, pelos movimentos do corpo, pela voz que surge do ato de
respirar.
Fiona
Ross, pesquisadora sul-africana, observa a inter-relação entre as palavras e o
silêncio, e constata como um pensamento criativo diante daquilo que se vê e se
ouve contribui para novos modos de lidar com o conflito e a diferença.
Enquanto conversávamos no calçadão da Felipe Schmidt,
demoramos alguns segundos para percebemos a ocupação silenciosa da dançarina
Elke Siedler e de Thiago Schmitz. Sua performance leva para o meio da rua as incertezas
presentes nas relações interpessoais. A vulnerabilidade e a falta de controle
vividas intimamente entre quatro paredes são expostas a todos que ousam parar
um minuto para ver aquela que trajava um vestido preto com rendas e de
alças, e seus pés calçados com uma
sandália de salto alto e fino, que desafiavam sorrateiramente a gravidade, o
esmalte vermelho das unhas se destacam tanto nos pés como nas mãos. A cabeça
era coberta com um capuz de couro preto, com orifícios nos olhos, nariz e boca.
As pessoas passavam, olhavam, aproximavam, se afastavam. Chegam até comentar o
uso da água e do dinheiro público. Uma menina
buscava entender com seu olhar sincero o drama ali proposto pelo casal,
manifesto na ausência de comunicação.
Na hora do banho, escuto comentário: “mas não estão jogando
água nela? Ah, agora estão”; Olho o
balde de água sendo jogado no corpo da dançarina encharcado. Presenciar “Um banho de água fria” ali no calçadão, faz
pensar que a negação da dor do outro não é uma falha intelectual, mas uma falha
na sensibilidade.
Espetáculos
como os de Valeska e de Elke podem nos auxiliar a exercitar a atenção sensível e habitar o próprio constrangimento
de testemunhar a dor do outro. Perceber como o ato de constranger e ser
constrangido opera na constituição da
nossa própria fala e também do nosso silêncio. Atentar é um ato sutil e
delicado. Pode ser um esforço profundo
compreender a si mesmo e essas pessoas
que dançam num palco sem cenário ou no calçadão da Felipe Schmidt. Eis o exercício de transbordamento ofertado
pela alteridade, que aprofunda a noção
de empatia, pois não exige que calcemos
os sapatos do outro, mas que fiquemos descalços em sua presença.
Publicado no Notícias do Dia em 31
de maio de 2013
[1] Ida Mara Freire
Professora
associada do Centro de Ciências da Educação da UFSC
Pós-doutorado
em dança pela University of Cape Town, África do Sul
lindo =)
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