sábado, 28 de fevereiro de 2009

Além do Belo...

Além do belo e do movimento: experiências sobre ensino e apreciação da dança
Ida Mara Freire

A experiência da dança na formação de professores

As leituras, as escrituras, as danças, os encontros, transformam o nosso ser. E o mundo, também não é mais como hoje de manhã; nascimentos, mortes, promessas, desacordos, guerra e paz marcam o tempo e a pluralidade. Assim nota-se a diferença, examina-se o estigma e justifica-se a educação. Ao ler o texto de Roland Barthes (1988) “Au séminaire” refletimos se não seria esse contexto para se propor a experiência da dança na formação do professor. Afinal, o que é um seminário? Um lugar real ou um lugar fictício? “O seminário (real) é para mim objeto de um (ligeiro) delírio, e que estou, literalmente, enamorado desse objeto”: anuncia Barthes (1988 p.333). Um espaço geométrico composto pelo institucional, o transferencial, e o textual. Na instituição há uma freqüência, um horário, um lugar, um curso. O espaço transferencial, estabelecido entre o coordenador do seminário e seu auditório, cujo papel é liberar a cena onde vão estabelecer-se transferências horizontais: o que importa em tal seminário não é a relação dos ouvintes com o coordenador, mas a relação dos ouvintes entre si. Neste contexto, a relação docente não é aquela de quem ensina para quem é ensinado, mas a relação dos ensinados entre si. Enfim, o espaço é textual: quer o seminário aspire produzir um texto, escrever um livro; quer, ao contrário, considere que sua própria prática, a sua própria dança – infuncional – já é um texto, eis um texto raro, aquele que não passa pela escritura. Essa proposição é um gesto que Barthes traça no espaço. Quem sabe um ponto, uma linha, presentes na superfície da tela de Kandinsky (apud Düchting, 1994) que examina cada aspecto separadamente, sem perder de vista a relação dos mesmos entre si.

O espaço e o corpo espelhados neste texto é o da dança no contexto escolar. Na leitura de Julio Groppa Aquino (1998) a escola não só acolhe as diferenças humanas e sociais encarnadas nos grupos que ali estão, mas o lugar de onde se engendram novas diferenças. Este espaço privilegiado da alteridade é enfocado pelo autor na perspectiva de quatro ângulos: o institucional, o ideológico, o legal e o teórico. Pode parecer que a ética neste contexto seja uma lição que não se ensina. No entanto, ao nos depararmos com o outro, diferente de nós, reconheceremos que temos muito que aprender sobre a mesma. Deste modo, a escola, enquanto espaço de ensino e apreciação da dança pode ser percebida assim: impulso criativo para a leitura e a escrita sobre a diferença no contexto escolar, um caminho pouco trilhado, até mesmo improvisado para chegarmos a compreensão de temas que nos são caros.

O presente trabalho é oriundo da pesquisa intitulada: Interrogação e intuição: corpo, diferença e arte na formação de professores (Freire, 2006), que investiga como as experiências do pensamento e do corpo vivido são vivenciadas no processo de criação artística envolvendo jovens e adultos com cegueira e alunas da graduação em Pedagogia / UFSC. Tendo como problema de pesquisa a indagação: como reconhecer os caminhos de ensino-aprendizagem do corpo vivido na experiência estética? No que se referem aos objetivos, esses foram assim formulados: a) Examinar a noção de ação criadora a partir da proposição e aplicação de um método de ensino da dança para professores em formação. b) Conhecer como professores em formação e platéia percebem a contribuição do dançarino com cegueira no processo coreográfico. Vale salientar, que nossas pesquisas têm tido como finalidade descrever as experiências de ensino da dança, examinando sua implicação para quem vê e quem não vê, ou seja, as pessoas não-visuais . Propomos a dança no curso de pedagogia, como uma possibilidade democrática do ensino de dança nas escolas públicas com vistas à apreciação da dança e seu impacto para o espectador. E refletimos acerca das experiências com a dança e com a cegueira, e como estas se apresentam como caminhos transformadores, quase desconhecidos na formação de professores.

A experiência do corpo vivido e a experiência do pensamento

O tema aqui proposto reflete nossas principais indagações acerca da formação docente, investigamos sobre a relação entre razão e o sensível, o pensar e o criar, a identidade e a alteridade presentes no saber e fazer pedagógicos. Nossas proposições se apóiam nas obras de Hannah Arendt e Maurice Merleau-Ponty. Se da primeira autora podemos apreender a experiência do pensar, do segundo apreendemos a experiência do corpo vivido.

O que é fenomenologia? O que é o pensar? Como posso ver uma coisa que se põe a me ver? Essas indagações partiram das obras de Edmund Husserl (1859-1938), Hannah Arendt (1906-1975) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), e foram propostas com o intuito de exemplificar o estilo fenomenológico. Os textos examinados aqui descrevem a experiência do pensamento de cada autor. Se Husserl explicita a experiência originária, Arendt nos descreve a experiência do pensamento e, Merleau-Ponty nos desperta para a experiência do corpo vivido. Essas experiências apresentam um modo especificamente humano de mostrar que estamos vivos, e como Arendt (1993) nos recomenda, necessitamos nos reconciliar com um mundo em que nascemos como estranhos e no qual permaneceremos como estranhos em nossa inconfundível singularidade.

Edmundo Husserl sugere: “considere o que escrevi não são resultados para serem aprendidos quanto à forma, mas a busca dos fundamentos para você construir por você mesmo e questões para você mesmo resolver” ( apud Goto, 2004 p.19). Eis o estilo fenomenológico: não se trata de um método sistemático, mas sim, de uma possibilidade de refletir sobre a existência humana em várias disciplinas científicas, filosóficas e artísticas, incluída nestas, a dança e a educação. As indagações fenomenológicas procuram reportar-se às vivências originárias pré-científicas, para depois transcendê-las em direção a uma perspectiva mais abrangente. Se refletirmos sobre - o que é fenomenologia - vamos nos deparar não só com um método radical como também com uma possibilidade de pensamento fundado no sentido do ser. Pois, “descartando a coisificação da razão e inserindo o homem no mundo e em sua participação, a fenomenologia situa sua ênfase na estrutura fundamental desta inserção: o vivido” (Goto, 2004). Para entendermos a realidade é preciso partir da experiência. Se as ciências reduzem a noção de experiência a processos produtivos internos, a fenomenologia, por sua vez, amplia esse conceito com a inclusão da subjetividade. Trata-se de uma vivência, aquilo que se vive, como um modo de estar entrelaçado – ser-no-mundo.

A noção de corpo que permeia a proposição de ensino dança aqui apresentada é descrita na obra de Fenomenologia da Percepção, para Merleau-Ponty o corpo é o lugar do fenômeno da expressão, no qual a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal e a significação intelectual. Meu corpo, examina o autor, “é a textura comum de todos os objetos e, é pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha “compreensão”. É ele que dá sentido não apenas ao objeto natural, mas ainda a objetos culturais como as palavras”(1945, p. 271).

O corpo daquele que não enxerga nos coloca diante de um problema levantado por Merleau-Ponty (2000) sobre a nossa dificuldade de compreender - como podem os movimentos de um corpo organizado em gestos ou em condutas nos apresentar alguém que não seja nós – como podemos encontrar nesses espetáculos outra coisa a não ser o que neles pusemos. A resposta possível, parece estar na percepção do outro e no diálogo, porém no tempo e espaço da dança.

Pautada na teoria da expressão fenomenológica (Müller, 2001), apresentamos a dança como expressão que propicia uma experiência de contato com o novo, e exprime a possibilidade de outras experiências. De maneira que “sabemos”, de antemão, que aquilo que fazemos pode ser feito por outro, assim como aquilo que o outro faz nós podemos fazer também. Destarte, o outro e o mundo existem de antemão para nós como realidade expressa. Ou seja, junto ao nosso campo de presença, se exprimem infinitos outros. Parafraseando Merleau-Ponty, o dançarino empresta seu corpo ao mundo e o transforma-o em dança.

O que é a cegueira? Parece-me então que para definir a cegueira faz-se necessário, ir além daquilo que é dado. Devemos nos propor conhecer a história daquele corpo como um entrelaçamento do nosso próprio corpo. A história de sua vida perpassa a história da nossa vida, configurando-se um modo peculiar de ser no mundo. Seres singulares, contribuindo para a pluralidade do mundo. Um ser que não usa a visão como sentido prioritário para conhecer o mundo. A cegueira deixa de ser objeto e passa a ser uma experiência perceptiva. Trata-se mais de lidar com a invisibilidade que com a escuridão. A cegueira está para quem não vê , assim como a invisibilidade está para quem vê. Apresentar a cegueira como uma experiência nos possibilita, apresentar nossa vida aberta ao outro.

Nesta alteridade radical que a cegueira se apresenta ao que vê, não se trata apenas de perceber o limite, mas pelo contrário identificar a co-existência. Em suma, ser o outro do outro. Aprendemos ao dançar com quem não vê que, estabelecemos novas referências em nosso corpo, buscamos uma conexão com outro através da respiração, essa pode em alguns momentos se tornar audível e visível. Atentamos para o espaço tendo nosso próprio corpo como ponto de partida. Criamos um movimento autêntico forjado em nos sentidos e em na memória corporal. Compomos assim, uma dança oriunda nos nossos vividos. O contato com o outro convida a correr riscos, podemos se perder, mas talvez achar algo em nós que estava perdido, também nos desafia a sermos receptivos e acolhedores. No espaço-tempo da dança o encontro com os nossos infinitos outros. Mesmo num solo não se dança sozinho, buscamos em nós não a cópia de um movimento, nem a repetição automática, mas uma nova leitura de um antigo gesto, “uma volta às coisas mesmas”. Retornamos ao ponto que o gesto desvela a co-existência com o outro eu mesmo.

A seguir iremos, primeiro, descrever as experiências com a dança e a cegueira, tendo como ponto de referência as atividades do Potlach Grupo de Dança. Em segundo lugar, discutiremos como as noções de visão e de visualidade presentes em nosso cotidiano atrelam o ver com o conhecer e, em contrapartida propomos o vídeo dança como um exercício de sensibilidade. Na terceira e última parte do texto, examinaremos a escola como um lugar privilegiado para um agir ético e estético.

Grupo Potlach: experiências com a dança e a cegueira

O Potlach Grupo de Dança se pauta num trabalho de pesquisa, ensino e extensão universitária para jovens e adultos com cegueira e com baixa visão. Com início das atividades em 1998, o elenco atual conta com a participação de 04 dançarinos com cegueira – e 03 dançarinas com visão, e estudantes do Centro de Ciências da Educação – CED da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. O trabalho vem sendo desenvolvido na Sala Espaço do Corpo no CED/ UFSC, e na Associação Catarinense de Integração do Cego - ACIC, com sede no bairro Saco Grande, em Florianópolis, SC. Além de ensaios, o projeto oferece oficinas de dança no nível iniciante e intermediário para os integrantes da ACIC.

Nosso trabalho busca ser uma experiência de ensino e apreciação da dança pautada na pesquisa perceptiva sobre o ver e o não ver. Durante o processo de criação os dançarinos, por meio de entrevistas, descrevem suas experiências cotidianas e memórias corporais. As seqüências são compostas com base na improvisação e no contato corporal. O projeto tem como objetivo apreender a dança como uma experiência estética, para isso se propõe desenvolver atividades que promovam à comunicação não-verbal, ampliação do vocabulário de movimentos e contato com o outro. Em dezembro de 2003 o grupo estreou o espetáculo QUATRO, no teatro da UFSC, em Florianópolis. No primeiro semestre de 2004 foi produzido “Água Constante...” processo coreográfico e apresentado nos Espelhos da Educação, evento promovido pelo Centro Acadêmico e a Coordenação do Curso de Pedagogia no CED/UFSC. Em 2005 apresentamos “Embalos e Canções”, nos Espelhos da Educação II e produzimos o vídeo dança Quatro. Em 2003 e 2006, o grupo foi pré-selecionado nos editais Rumos Vídeo Dança do Itaú Cultural. No mês de maio de 2007 os fragmentos da coreografia “Que sei eu?” foram interpretados na IV SEPEX/UFSC. Com este trabalho de pesquisa perceptiva e sensorial, o Potlach tem por finalidade despertar no espectador uma experiência estética insólita e provocadora acerca do acolhimento da diferença.
Numa tentativa de descrever um movimento durante uma aula de dança, uma dançarina não-visual do Potlach Grupo de Dança indagou que dança era aquela. Rindo, um dançarino não-visual respondeu: É a dança do sei lá o que... A brincadeira “pegou” e toda a vez que a descrição de algum movimento se torna complexa, sabemos que estamos criando a dança do sei lá o que...
Muitos indagam: Dança com dançarinos cegos? Cegos?!! Dança?!! Que dança é essa? Que movimentos são esses? Que corpo é esse? Quais sentidos, sensações, direções? A resposta: “É a dança do sei lá o que...” Esta dança, descrita pela dançarina, se relaciona com a percepção do espectador. Esta “dança do sei lá o que...” pretende interrogar sobre uma dança expressa no entrelaçamento entre um dançarino que não vê e o espectador que o vê. A coreografia busca tecer relações entre o dançarino e o espectador, trata-se de um jogo lúdico, dinâmico, criativo de reconhecimento do outro eu mesmo: o “nós”. Despertando, assim, uma dança forjada na sensibilidade, na temporalidade do corpo vivido, no visível e no invisível.
De certo modo, esses episódios explicitam questões similares presentes atualmente na dança contemporânea. Que, por um lado, são muitas vezes incompreensíveis, pois novos signos estão sendo constantemente recriado, o que pode provocar estranhamento. Que dança é essa? Que movimentos são esses? Por outro lado, vale trazer à tona uma questão: se a dança é da ordem da explicação ou da descrição. Neste sentido, a percepção privilegiada de quem não vê propõe uma dança que não se explica, mas que se sente como nascente de um corpo perceptivo. Ou ainda, uma dança concebida a partir de pessoas não-visuais, interroga mais que explicita. Essa possível interrogação dançante demonstra que a experiência entre o dançarino e a platéia pode ser, sim, a de corpos entrelaçados.
“Que sei eu?” Essa é uma pergunta que Maurice Merleau-Ponty apresenta em sua obra O Visível e o Invisível (2000), e que nos inspira a criar uma coreografia indagativa. Essa é a alternativa do filósofo à afirmação “Sei que nada sei” - instalada no ceticismo e que provoca uma dúvida que destrói as certezas. Mas as questões cotidianas estão aí, por exemplo, quero saber: onde estou? Que horas são? Questões que evocam um contexto, alguém que pergunta. Questões que são oriundas de nossas experiências como um “ser-no-mundo”. “Que sei eu?” Indaga Merleau-Ponty (2000), sem querer explicitar o que é o saber? Tão pouco quem sou? Mas, o que há? E ainda, o que é o há? Essas questões interrogam a nossa própria existência. E foi refletindo sobre a própria existência de dançarinos com cegueira que criamos uma coreografia que interroga o si e o mundo. Buscamos desvelar qual seria a questão existencial que cada dançarino não-visual trazia em si e, a partir daí, criamos os blocos coreográficos no Potlach Grupo de Dança, com estréia prevista para novembro de 2007 no Teatro da UFSC. Como exemplo citamos o solo da dançarina I. B., intitulada Cotidiano, que enfatiza sua rotina através de arrumação diária da cama, lavação da roupa., notamos que ela estrutura sua vida, buscando conhecer detalhadamente sua vida cotidiana. A dançarina A. C. em suas freqüentes romarias com a avó ao Santuário de Madre Paulina roga: que eu possa ver os obstáculos, inspirou-nos a criar a coreografia a partir de sua prece. A. S. dribla a dureza da sociedade ao lidar com a cegueira sendo dançarino e jogador de gol-ball de seus movimentos criamos o solo Espelhamento Lúdico. Finalizamos, com a coreografia Eu e o mundo, apresentando a dançarina T. R., em sua busca do amor, lembra que “eu e o mundo somos um no outro”.
A experiência de ensino-aprendizado da dança, vivida pelos integrantes do grupo Potlach, longe de visar o entretenimento, ou mesmo dar conta de uma agenda política temporária de inclusão social, convida o professor e a platéia a ver ou “não ver” para então conhecer. Essa atitude caracteriza numa busca da compreensão do nosso processo de vida à maneira arendtiana. Essa autora examina que foi após longa experiência de convivência e numa contínua conversa que os gregos descobriram que mundo que temos em comum é habitualmente considerado sob infinito número de ângulos, aos quais correspondem os mais diversos pontos de vista. O grego aprendeu a intercambiar com os seus concidadãos o modo como mundo lhe parecia e se lhe abria. Desta maneira, destaca a autora os gregos aprenderam a compreender – não a compreender um ao outro como pessoas individuais, mas a olhar sobre o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mesmo em aspectos bem diferentes e freqüentemente opostos (Hannah Arendt 2000 p. 82).

Destarte, buscamos formar professores como espectadores reflexivos e críticos, aptos para atuarem com a diversidade presente no contexto escolar de modo criativo atentos para as interpretações que se pode ter do corpo diferente no contexto das artes. Esperamos que o professor perceba o aluno numa relação de co-existência, co-criadores do processo artístico. No entanto, parece imprescindível que o próprio professor apreenda a experiência estética a partir de seus próprios vividos.

Até o momento, inspirados no ensaio “Au séminaire” de Roland Barthes (1988) refletimos neste texto o espaço geométrico composto pela escola, as relações presentes neste contexto, e a dança. Pautados em indagações fenomenológicas, apresentamos o corpo vivido e a cegueira como fenômenos da expressão que propicia uma experiência de contato com o novo, e exprime a possibilidade de outras vivências perceptivas de diálogo com o outro, porém no tempo e espaço da dança. Descrevemos como o trabalho de pesquisa perceptiva e sensorial do Potlach Grupo de Dança desperta no espectador uma experiência estética insólita e provocadora acerca do acolhimento da diferença. Em seguida iremos refletir a partir da obra de Evgen Bavcar a nossa proposição de vídeo dança e seu impacto no papel do espectador.


Vídeo Dança e cegueira: uma experiência paradoxal da sensibilidade

Vivemos numa sociedade do conhecimento. Neste contexto ver é conhecer. Gilliam Rose discute em seu livro Visual Methodologies (2001) a distinção que estudiosos contemporâneos tem feito a respeito da visão e da visualidade. Visão é o que o olho humano é fisiologicamente capaz de ver. Visualidade, refere-se ao que é visto e como algo é visto, sendo ambos construídos culturalmente. O termo “ocularcentrismo” foi cunhado por Martin Jay para descrever a aparente centralidade do visual na vida contemporânea ocidental. A centralidade do olho na cultura ocidental, se inicia quando observar, ver e conhecer se tornam entrelaçados. Bárbara Maria Stafford, uma historiadora do uso das imagens nas ciências, argumenta que, no processo iniciado no século XVIII, a construção do conhecimento científico sobre o mundo se torna mais em mais baseado em imagens do que textos escritos. Por conseguinte, Nicholas Mirzoeff sugere que a pós-modernidade é “ocularcêntrica”, não só em virtude das imagens visuais serem mais e mais comuns, nem tão pouco em razão do aumento da vinculação do conhecimento do mundo com a visualidade, mas por causa de nossa crescente interação com as experiências visuais culturalmente construídas. Deste modo, a conexão moderna entre ver e conhecimento é hiper estimada na pós-modernidade. A demanda no dias de hoje está em mais ver do quem em acreditar. Podemos, comprar um casa escolhida pela Internet, podemos ver nossos órgãos internos a partir de uma imagem de ressonância magnética. Podemos manipular nossas fotos em nosso computador.

Há imagens demais, constata Evgen Bavcar (2000), filósofo e fotógrafo não-visual. Esse autor argumenta que abundância de imagens-clichês no mundo moderno forma uma percepção abstrata das coisas que freqüentemente não existem mais por elas mesmas, mas somente através das imagens, sendo assim, a proximidade tátil é o mais seguro sinal de uma existência real. Em seu trabalho de fotógrafo compondo luz num espaço obscuro concebido como volume, Bavcar é consciente da separação do mundo do verbo daquele da imagem que ele busca reconciliar.

“Criamos dicotomias permanentes,” escreve Adauto Novaes (1997 p.13): “a consciência e a coisa , o sujeito e o objeto – divisões brutais que determinam com rigor as esferas do sensível e do pensado, do que vê e do que é visto.” É no intervalo dos sentidos,” continua esse autor: “que, segundo Merleau-Ponty, podemos descobrir que ver é, por princípio, ver mais do que se vê, é aceder a um ser latente. O invisível é o relevo e a profundidade é do visível. Aqui, o olho não é suporte natural do espírito, nem o espírito a sublimação da visão. O que Merleau-Ponty propõe é uma retomada, a partir de um momento “esquecido”, quando o pensamento de ver substitui o ver e fez dele seu objeto. Falando em quiasma ou entrelaçamento, procura desfazer corporalmente a distinção clássica entre sujeito e objeto, carne e espírito. Assim, descreve a relação carnal do sujeito e do objeto. Há uma universalidade do sentir e é sobre ela que repousa nossa identificação, a generalização de meu corpo, a percepção do outro. (Novaes, 1997 p.14)

A memória do corpo vivido, idéia que Bavcar desenvolve para além daquela que o senso-comum e o idealismo costumam usar, nos oferece sustentação na criação de vídeo dança. Ao examinar a obra desse fotógrafo, Adauto Novaes (2000) ressalta, primeiramente a noção de paralelismo, isto é, a idéia que impede qualquer superioridade do espírito sobre o corpo e do corpo sobre o espírito, como comentamos no parágrafo anterior. Nota, também que Bavcar realiza uma reflexão que passa pelo corpo e pelos sentidos, responde assim, a pergunta de Spinoza: O que pode o corpo? Indagação que induz, pois à demonstração de que o corpo supera o conhecimento que ele tem dele mesmo, da mesma maneira que o pensamento supera a consciência que ela tem dela mesma. Por conseguinte, percebe que a idéia de memória das sensações, que se pode ver nas fotos de Bavcar, coincide absolutamente com a idéia de memória expressa na Ética de Spinoza a memória não é outra coisa senão um certo encadeamento de idéias, envolvendo a natureza das coisas que estão fora do corpo humano. Por fim, Novaes, descreve esse encadeamento que se faz no espírito segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo humano: “Através do tato, do deslocamento do ar que desenha o contorno daquilo que ele não vê com os olhos, através do olfato, através do calor, o corpo de Bavcar é afetado pelos objetos exteriores, criando a memória das sensações e formando figuras.” (Novaes, 2000 p. 32)

No vídeo dança o elemento principal de conexão com a platéia não é a narrativa, a autobiografia, o documentário, ainda que este se guie a partir da experiência vivida, o que nos interessa é a experiência perceptiva daquilo que está sendo visto. O público é convidado a fazer a sua própria jornada, criar a partir das imagens e da sonoridade sua própria dança. A dança vinculada com a narrativa pessoal, como analisa Albright (1997), propõe que o espectador se transforme numa testemunha. No nosso entender, o que o vídeo dança proporciona não seria somente a transformação do papel de espectador, como também da sua própria experiência de observar. Logo, trata-se aqui da uma experiência estética que transforma tanto o dançarino não-visual como aquele que o vê. Eis um aspecto relevante para o ensino da dança: sua apreciação.

Poucos são os estudos brasileiros sobre a relação entre o público e o dançarino. No entanto, o crescimento do número de pessoas com diferenças físicas, mentais e sensoriais no contexto artístico têm suscitado uma silenciosa inquietação. Talvez, pelo fato de que até pouco tempo atrás os espetáculos de dança se constituíam como espaço da graciosidade e da perfeição, o corpo diferente desse ideal acaba por fim provocando uma instabilidade em nossos conceitos estéticos. Supomos que devemos aproveitar essa oportunidade para revermos nossos conceitos sobre o que é o belo. Nesse caso, um vídeo dança com dançarinos com cegueira, pode nos suscitar esse tipo de reflexão. Pois, não visa entreter, mas, sim convidar: - Venham apreciem a dança, em sua inteireza e na sua invisibilidade.

A seguir comentaremos sobre a escola ser um lugar de produção da diferença, um local para apreciar a coexistência.

Escola: espaço aberto para a experiência do outro

Na leitura de Aquino (1998) a escola, é um espaço privilegiado da alteridade. Com o intuito de reconfigurar a ética do trabalho docente Aquino preconiza cidadania à escolaridade. Discute sobre o que é se tornar cidadão num mundo de informação e globalizado. Constata que, embora a informação esteja disponível em escala planetária, a exemplo da Internet, o conhecimento só se aprende na escola, é lá que se forja um leitor do mundo arguto. Seria, pois, a escola o espaço-tempo de rompimento de idéias repetidas e abertura para se cultivar uma experiência original do pensamento.

Voltando para o texto de Barthes (1988), citado no início deste artigo, este escreve sobre o ensinar aquilo que encanta. Ao convidar a ensinar o que acontece uma vez, ele verifica aí uma contradição nos termos, afinal, ensinar não é sempre, repetir? O autor exemplifica citando Michelet: “Prestei sempre atenção para nunca ensinar aquilo que não sabia... Eu havia transmitido essas coisas como então estavam na minha paixão, novas, animadas, ardentes (encantadoras para mim), sob o primeiro atrativo do amor” (Barthes, op. cit. p. 340). Perguntamos: O ensino da dança na escola, não estaria aí uma maneira de ensinar aquilo que encanta? Ou ainda, não seria a dança uma possibilidade de encantar o corpo?

Aquino (1998) recomenda uma recriação do legado cultural, não apenas uma transmissão de saberes. No compasso com Hannah Arendt, esta apresenta a escola como um lugar do passado por excelência. Argumenta, que não há futuro plausível sem apropriação do passado, sem a imersão na tradição. Afinal, “uma compreensão bem clara de que a função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais que elas mesmas, a aprendizagem volta-se inevitavelmente para o passado, não importa o quanto a vida seja transcorrida no presente.” (Hannah Arendt, 2000, p. 246). O dilema proposto por Aquino está em decifrar como a escola de qualidade e para todos está a lidar com o binômio conhecimento e informação.

Mas, há um desafio maior, que é proposto, por Arendt: “A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (2000, p. 247). Isso se caracteriza com um problema ético, que carece de toda nossa atenção. Ao mesmo tempo que atravessa todo o sentido legal que institui a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família.

O dever distinto da família e da escola no que diz respeito à educação é explicitado por Aquino (1998). O autor ressalta as novas funções delegadas ao professor pelos movimentos históricos, exige ao mesmo tempo uma ampliação do âmbito pedagógico para o psicológico, seguido de perto pelo tecnicista, alimentado pelo crítico-reprodutivista, com isso se espera que o professor desempenhe inúmeros papéis – o familiar, o clínico, o assistente social, o nutricionista. Além de ter que ensinar de tudo. Aquino constata que, dentre os objetivos da educação explicitados no artigo 205 da Constituição, não há nenhuma menção ao conhecimento como elemento estruturador do trabalho escolar. Percebe-se que no momento atual da escola pública, não só o acesso deve ser garantido, mas, principalmente, a permanência. Essa é ocasionada por um trabalho educativo que é, ao mesmo tempo, teórico, técnico, ético e estético. Denuncia que a existência de um grande contingente de supostos “alunos-problema” é engendrada por uma rede de especialistas designados ao “tratamento dos distúrbios”, e ainda que se mudam o sotaque e as justificativas teórico-técnicas, mas o constrangimento permanece.

Aquino (1998) tece, também, considerações sobre o ensinar. Propõe que o ofício docente possa ser definido como resultado da articulação de três dimensões: “uma da especialidade, dos conteúdos específicos em foco (o quê); outra de cunho didático-metodológico, dos procedimentos relativos à (re)composição de tais conteúdos (o como) e a outra de natureza ética, que se refere aos valores de expansão humana e democratização social intrínsecos ao conhecimento e ao próprio ato de conhecer (o para quê).” Para o autor a intervenção escolar implica numa única exigência: a inclusão incondicional do outro. Atrela a essa premissa cinco regras éticas que podem imbuir o trabalho docente. 1) fidelidade ao contrato pedagógico, delimitação consensual dos papéis de aluno e de professor; 2) a compreensão do “aluno-problema”, como porta-voz de relações ambíguas; 3) recriação do perfil discente e o investimento nos recursos humanos concretos; 4) a permeabilidade à mudança e a experimentação de novas estratégias, 5) a potencialização do binômio competência e prazer como um tipo de “dever cotidiano”.

A escola é um lugar de produção da diferença. Para Barthes (1988) a diferença não é conflito. Mas, sim, “que cada relação, pouco a pouco” (isso demanda tempo), se originaliza: reencontra a originalidade dos corpos tomados um a um, quebra a reprodução dos papéis, a repetição dos discursos, elude (evitar ou esquivar com destreza) toda encenação do prestígio, da rivalidade. Seria, perceber a diferença que nosso corpo-próprio desvela. É se deixar se mostrar, se desnudar diante do outro, não com tentativa de ver o que está à sombra, mas de demorar a olhar naquilo que é invisível. O estar entre outros distingue ou homogeneíza. Qual será o nosso foco neste espaço diante (ao lado) do outro?

Se percebermos o outro como uma paisagem que se descortina diante de nós, podemos aprender a vê-lo como vemos a nós mesmos. Essa aprendizagem do olhar pode ser exemplificada com Degas (apud Growe 2001), que rejeitava atentar para a paisagem e interpretar suas cores num quadro como um “estado da alma”, sua escolha, ao contrário, primava pelas sensações puras, simples, tonalidades diáfanas, com contrastes mínimos e muita luz. Apreender essas sensações é, sobretudo, “uma condição do corpo”, implicada na reflexão do olhar que assemelha a criação à experiência visual. A experiência com dançarinos com cegueira tem nos ensinado sobre um olhar criativo do outro, nascente de uma diferença original, portanto, desvinculado dos nossos pré-conceitos. Desta maneira, a educação, como prática teórica, campo profissional ou arte de viver – talvez não seja objeto passível de cientificidade, mas trabalho ético e estético, ação que revela com suavidade as marcas do corpo na formação de professores.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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