sábado, 28 de fevereiro de 2009

Novos Corpos em Cena

Novos corpos em cena: ensaio sobre a postura do espectador
Ida Mara Freire
Professora do Centro de Ciências da Educação
Universidade Federal de Santa Catarina

Novos corpos em cena: um ensaio sobre a postura do espectador

RESUMO
Artistas contemporâneos estão propondo um novo papel para o espectador. A proposição não se materializa somente no que diz respeito ao corpo do artista, como também, em relação aos corpos da platéia. Identifica-se o surgimento de insólitas confrontações no contexto das artes. No presente ensaio, descrevo, primeiramente, algumas experiências estéticas, pelo modo que se apresentam, desafiam a atitude passiva do observador. No segundo momento, problematizo a perspectiva de tratar o diferente como não-belo. Finalmente, discuto o olhar do espectador na esfera da pluralidade humana, refletindo sobre uma estética da existência, na perspectiva arendtiana, ou seja, a vida como processo criativo.

Palavras chaves: corpo, diferença, arte, política.

New bodies in scene: an essay on the spectator's posture
Abstract
Contemporary artists are proposing a new paper for the spectator. The proposition is not only materialized in what he/she says respect to the artist's body, as well as, in relation to the bodies of the audience. He/she identifies the appearance of unusual confrontations in the context of the arts. In the present rehearsal, I describe, firstly, some aesthetic experiences, for the way that you/they come, challenge the observer's passive attitude. In the second moment, questioning the perspective of treating the different as no-beautiful. Finally, I discuss the spectator's glance in the sphere of the human plurality, contemplating on an aesthetics of the existence, in the Arendt perspective, or be, the life as creative process.

Key words: body, difference, art, politics.


O que é a estética da Existenz? Como seria a postura do espectador diante dela? Posso parecer ousada ao apresentar nesse ensaio essa primeira pergunta, principalmente, porque não tenho ainda uma resposta definitiva para ela. Mas, tenho sim, vivenciado várias experiências que me possibilita descrever tanto o papel do dançarino como o de espectador.

Sendo assim, confesso que não foi sem emoção que me deparei com o Friso Beethoven, localizado no subterrâneo do palácio da Secessão, em Viena. O Friso Beethoven, foi criado por Gustav Klimt como parte das obras expostas durante a 14a. Exposição dos membros da Secessão, realizada em 1902. O contexto era de decadência e efervescência política e cultural, Viena, dividida entre a modernidade e a tragédia, entre a realidade e a ilusão, criava em torno de si opiniões que transpareciam sua reputação de indiferença, mas que ao mesmo tempo se fazia notar a qualidade e sua diversidade cultural. Tornando assim um centro artístico, ou ainda um “Laboratório do Apocalipse”. Essa era atmosfera que propiciou a criação de uma associação de artista intitulada de Secessão, a qual Klimt foi escolhido para ser presidente. Interessada em respaldar as proposições dos novos artistas a Secessão objetivava, também, fundar uma instituição autônoma que os congregassem em forma de exibições e publicações e os apresentassem ao publico vienense como a vanguarda internacional da arte.
Na 14a. Exposição ocorrida em 1902, os membros dessa associação apresentaram a Viena, “um estilo diferente de evento”, planejada detalhadamente, essa exposição almejava encontrar um modo ideal de apresentar a versão dos artistas da arte moderna monumental, e ao mesmo tempo, enfatizar de modo especial o processo de criação do trabalho artístico – tentando assim “aprender juntos”; desejando a harmonia co-existente entre arquitetura, pintura e escultura. O prédio da Secessão era conhecido como o “templo da arte”, onde o melhor e o mais sublime que os seres humanos foram capazes de produzir.

Percorrendo com os olhos e buscando apreender cada detalhe do Friso, me sentia inundada pelas cores, formas e a força daquelas inquietantes figuras que traduziam com originalidade os três tempos da 9a. Sinfonia de Beethoven: Aspiração à Felicidade, Forças Inimigas, Alegria, nobre centelha divina e Este beijo ao mundo inteiro. Vale salientar a natureza controvertida do Friso pintando por Gustav Klimt , primeiro, por ser uma de suas obras mais ambiciosa, como também a menos conhecida, e talvez em conseqüência disso, a mais mal interpretada.

Revendo as minhas anotações sobre essa experiência, verifico que o Friso Beethoven poderia ser uma ilustração ideal às questões voltadas à filosofia da existência, ao feminino como política, e a relação do espectador diante da diferença. Primeiramente, pelo motivo da 14a. Exposição de a Secessão ser consagrada a Beethoven. Um segundo aspecto diz respeito ao tema do Friso se vincular ao anelo à felicidade. Soma-se também, à representação do feminino. E por último, a reação do público frente à obra.

O feminismo como política pode caracterizar a busca da compreensão sobre o nosso processo de vida. Compreensão, essa tão bem discutida por Hannah Arendt , para essa autora, trata-se de um processo complexo, ou seja,

uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa no mundo. (...) A compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com o mundo em que nasceu como um estranho, e no qual permanecerá sempre um estranho, em sua inconfundível singularidade. A compreensão começa com o nascimento e termina com a morte.

Essa busca de compreensão nos remete a questão sobre o sentido da política e a nossa postura diante do mundo. A existência política está associada a um valor, uma finalidade para vida humana fundamentada na razão, na felicidade, na justiça e na liberdade. A palavra política, de origem grega: ta politika, vem de polis, a Cidade composta por cidadãos, livres e com direitos iguais perante a lei e de expor e discutir em público suas opiniões. Nesse contexto original da política se evidencia a pluralidade humana, em concordância com Arendt,

condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever necessidades das gerações vindouras. Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso ou da ação para se fazerem entender.”

Em suma, a compreensão como ação política, contribui para nossa capacidade de se distinguir, tornar-se singular na pluralidade humana. Fazemos isso com palavras e atos, criamos algo novo e conseqüentemente nascemos outra vez.

Essa experiência de criação, distinção e luta pela vida, que motivou os artistas membros da Secessão a propor uma exibição consagrada a Beethoven, também se traduzia numa aposta na arte fazer da felicidade uma realidade entre os homens e, ainda ser capaz de assegurar a regeneração do mundo. Mas se isso foi o almejado pelos secessionistas em 1902, até que ponto a contemporaneidade se vincula a esse projeto de cunho vanguardista? Em primeiro lugar, o que se vislumbra dessa experiência é uma idéia germinal de estética da Existenz. Ao escolher Ludwig van Beethoven como mártir, redentor da humanidade, Klimt e seus amigos, vê nele a corporificação do gênio e na sua obra exaltação do amor e do sacrifício capazes de salvar o homem. Tal atitude não só revela a veneração por esse artista, assim como uma busca de solução para as questões que Klimt, já fazia sobre o sentido da existência humana.

Outro aspecto que merece nossa atenção trata da reação do público. Muito embora, a 14a. Exposição da Secessão consagrada à Beethoven tenha sido um grande sucesso, durante três meses foi visitada aproximadamente por 60 mil pessoas, o Friso pintado por Klimt, foi visto como desafiante pelo público e a imprensa. Os quais avaliaram o friso como anêmico e rígido, além de considerarem os personagens repugnantes e indecentes. O vínculo entre friso Beethoven e os artistas contemporâneos está no olhar do espectador sobre o corpo. O corpo singular, seja apresentado como um mártir, tal como foi Beethoven, e representado nas pinturas de Klimt, ou como ator/dançarino como vemos hoje, continua celebrando a diversidade humana e desafiando o público.

O corpo diferente está em cena: nas telas do cinema, nos palcos de dança, nos teatros, museus e galerias de arte. Artistas, muitas vezes apresentados por ou para nós como pessoas com necessidades especiais, buscam a compreensão através da arte, tentam reconciliar com a realidade que insiste em negar-lhes o direito de uma vida digna. Suas ações criativas os inserem no mundo concebendo um segundo nascimento, original e singular.

Mas aos olhos do espectador a diferença ainda pode parecer repugnante e indecente. Vejamos, como argumenta Arendt “nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador,” Por conseguinte, explica a autora: o fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais, tem conseqüências de longo alcance para o que nós –seres que aparecem em um mundo de aparências – entendemos por realidade – tanto nossa quanto a do mundo.” A rejeição do público frente à diferença pode ser interpretada como um não reconhecimento, uma negação à realidade, apresentada como pluralidade humana.

Decerto que na tradição do pensamento filosófico ocidental, no vocabulário grego a palavra “conhecer” é derivada da palavra “ver”, ou seja, primeiro você vê e depois você conhece. Também se é possível, identificar que o termo filosófico “teoria” deriva da palavra grega que designa espectadores, theatai; ou teórico, o qual séculos atrás, significava “contemplando”, ou seja observar do exterior. Pode se identificar a distinção entre agir e compreender. O espectador pode compreender o espetáculo, em virtude de sua posição externa, que lhe permite ver a cena toda. O termo “filosofar,” o verbo e não o substantivo, é apresentado pela primeira vez quando Sólon, após ter promulgado as leis de Atenas, partiu em viagem durante dez anos, tanto por razões políticas como também para ver o mundo – theorein. Ao chegar em Sárdia, Creso lhe perguntou: “Estrangeiro, as notícias sobre sua sabedoria e suas andanças chegaram até nós, dizendo que você percorreu muitos países da Terra filosofando sobre os espetáculos que viu.”

Na tradição romana, se verifica a perda dessa relevância filosófica do espectador. Como indica Arendt

os espectadores romanos não estavam mais situados nas últimas filas de um teatro de onde eles, como deuses, poderiam olhar, lá embaixo, o jogo do mundo. Agora o seu lugar era a costa, ou o porto seguro de onde poderiam observar, sem correr riscos, a agitação selvagem e imprevisível do mar varrido pela tempestade.

O que se perdeu, além do privilégio do espectador de julgar e do contraste de pensar e fazer, foi a percepção imbuída no fenômeno que toda aparência demanda espectador. Essa é a postura do espectador, que Idade Moderna herdou e que parece ainda hoje guiar as atitudes frente à diferença - uma distância “nobre” e vantajosa.

No entanto, a ação criadora é revolucionária. Tal como venho sugerindo tendo aqui alicerçados meus argumentos na experiência de Klimt e na perspectiva fenomenológica de Hannah Arendt. A dança contemporânea, por exemplo, tem proposto um novo papel para o espectador. Esse é convidado, de surpresa a tomar parte nos espetáculos. Outras vezes, vai assistir os espetáculos, que em vez de lhe proporcionar entretenimento, o faz pensar sobre si próprio e os outros. Retomando a nossa questão inicial: O que é a estética da Existenz? Verifico que a arte contemporânea tem buscado essa resposta, tal como Klimt e seus amigos buscaram ao propor a exposição dedicada a Beethoven. O espectador é provocado a ver para conhecer. Entrar em contato com o mundo, como fez Sólon para daí filosofar sobre o que viu. Lembrar que a pluralidade é a lei da terra. Convenhamos, se “o Ser do homem é caracterizado como Ser-no-mundo, e o que está em questão para esse Ser no mundo é, finalmente, nada mais do que manter-se no mundo. Precisamente isto não lhe é dado; assim, o caráter fundamental do Ser-no-mundo é a ansiedade no duplo sentido de desabrigo e medo.” A distância “nobre” do espectador se constitui num obstáculo para que ele se reconcilie com a realidade e possa sentir em casa no mundo. A Existenz, não está vinculada a nenhuma forma do Ser, para Jasper é uma forma da liberdade humana. Ou melhor, “o homem é em sua realidade humana uma possível Existenz”. Assim, a palavra “Existenz” tem o sentido de que apenas quando o Homem se move em liberdade que repousa sobre sua própria espontaneidade e está “voltado em comunicação para a liberdade dos outros” é que há Realidade para ele.” Nesse sentido, o que arte nos oferece é a liberdade de expressão, nossas palavras e nossos atos criam a nosso existir no mundo, de modo que podemos compreender o nosso processo de vida, vivendo como seres distintos e singulares entre iguais. Essa conclusão esboça primeiramente, uma possível resposta a questão - o que é a estética da Existenz? E conseqüentemente, apresenta mais elementos que nos assegure uma postura inovadora do espectador frente à diferença. Espero assim que tal experiência seja uma vertente terna e firme de um feminismo que tenha a busca de compreensão como política e a arte se mantenha como um hino à alegria e este beijo ao mundo inteiro.

Bibliografia
ARENDT, Hannah. “A vida do espírito”. Rio de Janeiro, Relume- Dumará, 1991

ARENDT, Hannah. “O que é filosofia da Existenz? In: ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993. p.15-37.
ARENDT, Hannah. “Compreensão e Política”.In: ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993. p.39-53.

ARENDT, Hannah. “A condição humana”. Rio de Janeiro, Forense Universitária. 1995.

BISANZ-PAKKEN, Marian. “The Beethoven frieze by Gustav Klimt and the Vienna Secession”, In: HOLAUS, Bärbel, Secession. Wien: 1997. p.20-28.

CHAUÍ, Marilena. “Convite à Filosofia”. São Paulo, Editora Ática. 1995.


FERREIRA, Aurélio B. H. “Novo dicionário da língua portuguesa. 2a. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1986.

LOUIS, Eleanora. “To the age its art, to art its freedom In: HOLAUS, Bärbel, Secession. Wien: 1997. p.6-19.

NÉRET, Gilles. “Gustav Klimt”. Köln, Benedikt Taschen, 1994

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