sábado, 28 de fevereiro de 2009

O Avesso do Gesto

Möbius: o avesso do gesto

Ida Mara Freire*

O avesso do pé seria a mão? Essa indagação surgiu ao assistir ao espetáculo Möbius, a mais recente criação coreográfica do Aplysia Grupo de Dança, composto por Valeska Figueiredo, diretora e coreógrafa e demais dançarinas: Daniela Alves e Paula de Paula. As seqüências de movimento, inspiradas na fita do matemático alemão August Möbius (1790-1868), sugerem inabituais conexões entre suavidade e simetria. O espectador é convidado a fazer, ao seu próprio ver, alguns exercícios, ora de percepção de pontos opostos e contrastes, ora de desvelar sutilezas. Sorrir, por que não? Brincar com aquilo que vê. Experimentar no tocar a própria pele outras versões da insustentável leveza do ser.

Fronteiras. Em tempos de globalização, a intimidade desponta o risco de perceber e ser percebida pelo outro.

das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros
são

aquelas em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?

Os versos de Paulo Leminski (1944-1989) e a dança do Aplysia nos provocam a irmos ao encontro do gesto que se desdobra em nossas fronteiras. Lugar indefinido, onde o fora de mim está dentro do mundo.

Dilatação. Palavra tão conhecida num universo feminino. Universo já dançado torna-se agora dilatável na composição de novos solos, duos e trios. Exigindo do espectador uma escolha do olhar. Refinamento daquilo que se quer ver: gestos, corpos entrelaçados, espelhados, dança.


Linguagem própria. O que é a dança? o que é falar sobre a dança? A linguagem está vinculada à dança pela descrição, e nesse caso, ao descrever a dança eu a defino. Falar a respeito da dança, do processo coreográfico, é um exercício de perceber a fala como gesto. Um gesto que indaga, busca um sentido, uma compreensão. A conversação cria a dança, ao mesmo tempo em que a dança cria um discurso com o outro. Não se trata de interpretações intelectuais, mas de uma experiência perceptiva recíproca.


Meditação do Sensível. Há algo mais sutil e privado que o meu ato de respirar? No entanto, não é por esse mesmo ato que me interpela qualquer outra corporalidade? Quando a respiração se torna audível e visível na dança, um sentido de co-existência é despertado. Afinal, se o outro deve existir para mim, é preciso que origine aquém do meu pensamento. De fato, medita Maurice Merleau-Ponty, se “a partir” do próprio corpo posso compreender o corpo e a existência do outro, se a co-presença de minha “consciência” e de meu “corpo” se prolonga na co-presença do outro e de mim, é porque o “eu posso” e “o outro existe” pertencem desde já ao mesmo mundo, é porque o próprio corpo é premonição do outro.

Espelhos. Se percebo o outro como uma paisagem que se descortina diante de mim, posso aprender a vê-lo como vejo eu mesmo. Essa aprendizagem do olhar, proposta pelo espetáculo Möbius pode ser exemplificada com Degas, conhecido como o pintor das bailarinas, que rejeitava atentar para paisagem e interpretar suas cores num quadro como um “estado da alma”; sua escolha, ao contrário, primava pelas sensações puras, simples, tonalidades diáfanas, com contrastes mínimos e muita luz. Acolher em si mesmo essas sensações é sobretudo uma “condição do corpo”, implicada na reflexão do olhar que assemelha a criação à experiência visual. Destarte, ver e ser visto pelo corpo do outro são como lampejos nascentes nesse espelhamento.

O gesto habita o som... “Não comando meu corpo para que ele se expresse; me expresso e isso é ritmo. Não ajo: deixo que a ação se faça, que a expressão apareça. Na espacialidade do gesto o tempo se dilata e se contrai, dilatando-se e contraindo-se simultaneamente meu corpo.” As palavras de Alberto Heller sugerem as inúmeras possibilidades de se vincular música e dança. Assim pensando, a trilha musical de Möbius, dirigida por Jefferson Bittencourt, desafia o espectador a evocar uma dualidade vivaz e, à maneira de Roland Barthes, cindir o gesto do som e desvelar inesperadamente a dança.

O inesperado na repetição: improvisação. O paradoxal no movimento do corpo que dança é a possibilidade do encantamento. A dança encanta o corpo. Pois faz brotar a sincronicidade, não só entre os dançarinos, mas também da platéia que testemunha, testifica, percebe e abre assim espaço para o milagre. Para Hannah Arendt, os milagres são eventos que revelam uma compreensão extraordinária de liberdade, pois não se trata só de causas sobrenaturais, mas devem ser sempre interrupções de qualquer acontecimento, de um processo automático, em cujo contexto constituem o absolutamente inesperado. É a platéia ou a ausência dela que vai lembrar ao dançarino que a dança de hoje não é a mesma que ele dançou na noite passada.

Cultura. Qualquer discussão acerca da cultura deve eleger como ponto inicial o fenômeno da arte, indica Arendt. Pois a obra de arte tem um único objetivo: aparecer. Por conseguinte, o critério para julgar aquilo que aparece é a beleza. Mas, para julgar se algo é ou não belo, precisamos ser livres. Trata-se de uma atitude de alegria desinteressada, vivida depois, que as necessidades do organismo vivo foram supridas. Em uma sociedade de consumo, acostumada a condenar a arte ao entretenimento, a dança como uma expressão artística e educativa, é muita vezes, relegada nas políticas culturais. Bom que Möbius foi contemplado pelo prêmio Funarte de Dança - Klauss Vianna, patrocinado pela Petrobrás. Mesmo que os incentivos oferecidos tenham sido insuficientes.

Liberdade. Apreciar a dança é um exercício de liberdade. Contudo, essa apreciação só é possível quando somos livres para estabelecer uma certa distância entre nós mesmos e aquilo que admiramos. Arendt constata: quanto mais importante é a pura aparência de uma coisa, mais distância ela exige para a sua apreciação adequada. O aparecimento do Aplysia no mundo da cultura catarinense, assim como de outros grupos emergentes, requer daqueles que apreciam a dança um certo distanciamento - não se trata da distância da ignorância ou da indiferença, mas de abrir espaço para ver a dança, por alguns momentos sairmos de cena, esquecer de nós mesmos, as preocupações, interesses e anseios de nossas vidas e nos espelharmos e entrelaçarmos no corpo que dança. Na perspectiva de Merleau-Ponty, a carne (a do mundo ou a minha), da qual a fita de Möbius parece-me uma bela metáfora, não é contingência, caos, mas textura que regressa a si e convém a si mesma. Assim sendo, percebamos, ainda que por alguns instantes, que somos um.

*Professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC
Diretora e coreógrafa do Potlach Grupo de Dança
Autora de livros e ensaios sobre diferença, dança e cegueira.

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