sexta-feira, 30 de maio de 2014

Escrituras Coreográficas


Escrituras Coreográficas

A chuva e o frio não foram impedimentos para  plateia  do Múltipla Dança participar assiduamente  das oficinas, dos diálogos e dos espetáculos e escrever suas “corpografias”: uma escrita movente, articulada no deslocamento do gesto que escreve para o gesto que  dança, notações das marcas de passos, lapsos e lampejos da memória intercorporal entre o dançarino e a plateia. Experimentação identificada nas proposição das Múltiplas  Escritas, coordenado por Anderson do Carmo e Sandra Meyer Nunes, cujo procedimento para os interessados em escrever um texto sobre as atividades da programação deixavam uma pista de pensamento para quem  escrevesse o próximo texto.  Com isso se pratica a reflexão na dança, enfatizada na contaminação mútua de quem escreve e lê acerca da experiência do dançar, presente no exercício crítico  debatido na tarde de quarta-feira no Centro de Desportos da  UFSC, no Diálogo entre  Ana Francisca Ponzio,  Joubert Arrais e Sandra Meyer , no qual a jornalista Néri Pedroso tematizou a importância do discurso crítico como ponte  e não como barreira entre a obra do artista e o público.

Escrituras que o leitor e a leitora espero terem tido durante a semana a oportunidade de apreender, seja ao
 testemunhar no solo “Solidão Pública” de  Adilso Machado, um partir  de si mesmo em direção a um outro que nunca se alcança,  sensação desértica da afetividade aterrissadas pelas composições de Tom Monteiro. 
Michele Moura por Cristiano Prim

Talvez,  no trabalho da dançarina Michele Moura, “Fole”,  a percepção de vocês tenham se alterado,  por segundos,  quem não notou em seu próprio corpo o eco dos vocalizes amplificados por Rodrigo Lemos,   ou como as reverberações dos intensos movimentos criam histórias de corpos desnudos,   destituídos de  um querer que nem todos  querem ver.  O solo de Alejandro Ahmed, “Sobre Expectativas e Promessas”  se instala em uma vontade de desaparecimento. Acompanhado de Hedra Romagnani ocupam o espaço vital  deixando  rastros sonoros e luminosos de seus movimentos que  desafiam  o espectador em busca de autoria. Dilema contemporâneo  que junto com Ítalo Calvino nos induz desvendar quem é cada um de nós senão uma combinatória  de experiências, de leituras, de imaginações, de movimentos.  “Maneries”, espetáculo que encerrou  o Múltipla Dança no domingo, dirigido por Luis Garay, expõe o corpo  como produtor e receptor de possibilidades linguísticas,  que a dançarina Florencia Vecino,  banhada pela luz de Eduardo Maggiolo,  forma e, com a música de Mauro Ariel Panzillo, transforma  diante do nosso olhar contemplativo.  

O Múltipla Dança, confirmando aposta inicial da curadoria, apresentou  em sua diversa programação a dança para além de um eu individual,  a dança que dá lugar para a ausência, a dessemelhança, ao que está só, que abre espaço para a descontinuidade e promove uma escrita  crítica e criativa para fazer falar o que não tem palavra: o  ninho de João-de-Barro na sacada,  os utensílios de uma bolsa alheia, o pescar a luz com paciência no poço da escuridão...

Ida mara Freire ida.mara.freire@ufsc.br Professora Associada  do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Pós-Doutorado em Dança pela Universidade  da Cidade do Cabo, África do Sul.
Publicado no Jornal Notícias do Dia em 28/05/2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

Dança: criação infinita

 
                                             Dança: criação  infinita
Na noite de quarta-feira, no teatro da UBRO, o Múltipla Dança apresentou o solo Finita,  dirigido e interpretado por  Denise Stutz,  dedicado à sua mãe. Surgido da necessidade de compreender a falta, o que se vivenciou durante o espetáculo  foi o exercício de equilíbrio sutil  entre a lembrança e o esquecimento. Enquanto  a plateia  buscava um lugar para  assistir a dança, ao fundo do lado esquerdo  palco, ainda em penumbra, Denise Stutz já estava a se movimentar.
Foto de Cristiano Prim

Ela caminha para a frente do palco,  agora um pouco mais iluminado, conta estalando os dedos,  anda em direção, ao que faz imaginar ser  uma vitrola,   e a sonoridade de Preludio e fuga em dó maior de J.S.Bach invade o ar, vai para trás das cortinas. No palco, a cadeira vazia  preenche-se  com os pensamentos da plateia. Vestida de uma bermuda xadrez,  camiseta e um calçado confortável, ela se mostra  à vontade com o corpo, com a dança,  e com o lugar  aonde está: o teatro. Não se trata de um texto decorado, nem de passos demarcados, mas de um degustado trabalho de memória viva.  Narra para a sua mãe ausente  como que a vida de uma  bailarina  é sustentada por um infinito contar: um, dois, três, quatro...  Desfia como contas de um colar, fragmentos de uma vida permeada pela ausência e pelo desaparecimento de alguém que se ama; pérolas que a plateia, sensivelmente deslocada  entre sorrisos e lágrimas, colhe para si. “A vida  vai depressa e devagar. Mas a todo momento penso que posso acabar.” Cecília Meireles com seus poemas  enraíza nossa finitude em nossa mente. Similarmente, Denize Stutz  ao dançar  faz que o espectador escave para além dos tecidos de sua pele suas memórias corporais. Ambas  nos oferecem  o cálice da demora  da ausência em nosso  próprio ser,  essa despedida pronta  a cumprir-se. Diante do aplauso dá-se o sinal que o espetáculo acabou,  desconfiado o público não sabe como se comportar ao ver que a bailarina Denise Stutz não para de dançar.
“Meu processo de criação me ocupa o dia todo. Às  vezes estou na rua , e não estou enxergando, acordo a noite para resolver  um problema. Porque são problemas ou resoluções. É muito interessante quando estou nesse estado de criação que é necessário dizer. Você tem a sensação da necessidade de falar e você começa a construir. A construção e  desconstrução de um material de criação é quase matemática.  A criação é uma desorganização.” Essa escrita de Denise Stutz  está impressa no livro de Lilian Vilela  intitulado  “Uma vida em dança:  movimentos e percursos de Denise Stutz”, lançado na noite de quinta-feira  na Fundação  BADESC,  juntamente com o filme Limiares, dirigido por Sandra Meyer, sobre a vida  do  dançarino Anderson  João Gonçalves. Mais  um  momento  que  fomos suspensos pela percepção que o corpo é finito, mas a dança  é eterna.
Ida mara Freire ida.mara.freire@ufsc.br Professora Associada  do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Pós-Doutorado em Dança pela Universidade  da Cidade do Cabo, África do Sul.


Publicado no Jornal Notícias do Dia 26/05/2014

O dançar e o tempo

O dançar e o Tempo
O Festival Internacional Múltipla Dança, na tarde de terça-feira, iniciou-se com um diálogo entre o Alejandro Ahmed, Lilian Vilela e Denise Stutz,   acerca da pesquisa biográfica em dança.  No auditório do Centro de Desportos  da UFSC, um público de estudantes, dançarinos, pesquisadores e professores tiveram  a oportunidade de ouvir, conversar sobre a articulação da  narrativa com o tempo e explorar como  uma escrita biográfica auxilia a dar forma à experiência humana. A pesquisadora  Lilian Vilela  descreve  seu processo de escrita biográfica sobre a dançarina Denise Stutz, registrando uma intrincada teia textual entre memória, corpo e escritura. A composição do diálogo coloca lado a lado aquela  que escreve a respeito da vida  daquela que dança.  E Denise Stutz, também presente na conversação, desvela que sua história  e sua memória estão  presentes mais  em seu  corpo que em suas palavras. O coreógrafo e dançarino Alejandro Ahmed, permite que sua trajetória de vida embaralhe-se com a da Companhia de Dança Cena 11,  busca apreender  a  biografia como comunicação de ideias do corpo presente no tempo e no mundo. Por conseguinte, a narrativa no contexto da dança expõe os eventos dentro de uma ordem particular e  nos faz perguntar  como o corpo lembra?
Ao trazer em cena a biografia no contexto da dança, seja ela escrita na carne,  ou palavras verbalizadas, o Múltipla Dança sugere o exercício  de vasculharmos nossa atitude perceptiva e tentarmos  identificar como o tempo afeta a nossa compreensão de nós mesmos. Essa busca da temporalidade ancorada na interrogação  prioriza a descrição da experiência vivida.  Tal conhecimento incentiva a leitora e o leitor   contar  diferentes estórias sobre si mesmo no transcorrer da vida. Surpreendentemente, a narrativa sobre a vida  de cada um de nós mudará durante o tempo que estivermos vivos. O  que se mantém, o que se modifica na existência, e no corpo, que cria a sensação dessa dança escorrendo entre os dedos do tempo vivido?
Cia  de Dança Esther Witzman Foto de Cristiano Prim
Indagação essa que  Alexandre Bhering, Marcelo Lopes, Mônnica Emilio, Peter Mark, Vandré Vitorino, elenco da  Companhia de  dança Esther Weitzman,  encorajou  a plateia  pensar  ao apresentar a coreografia  intitulada  O Tempo do Meio. Dirigido por Esther Weitzman, o espetáculo de abertura  do Múltipla,   enfatiza a valorização do movimento como um acontecimento único e inusitado, chamando atenção, por exemplo,  para o instante  entre o passo e o estalar dos dedos do dançarino, na composição  do silêncio circunscrito na musicalidade de Jean Jacques Lemêtre, no qual o tempo nunca passa.   A pausa revestida pela luminosidade impressionista  de José Geraldo Furtado e as transposições do movimento entre os corpos que ali no  cenário  de Leo Bungarten  são traduzidas na leveza e no vazio, descortinam um esperar para compreender. Para o corpo que dança,  o instante não é uma ficção, e sim, o ponto  em que um gesto se acaba  e um outro começa.
Ida mara Freire ida.mara.freire@ufsc.br Professora Associada  do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Pós-Doutorado em Dança pela Universidade  da Cidade do Cabo, África do Sul.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Múltiplas Indagações


Múltiplas Indagações

“O que ou quem te move? Por quais forças você é tomado?”  Perguntam  Jussara Xavier e Marta Cesar, curadoras do Múltipla Dança- Festival Internacional de Dança Contemporânea,  premiado pela FUNARTE, que hoje volta à cena catarinense em seu sétimo ano. Ao sustentar a experimentação de um eu que não vive só para si, mas também para os outros, o Múltipla esse ano oportuniza ao espectador a experiência biográfica na área da dança, seja ela escrita, dançada, falada ou filmada.  E talvez,  o enigma que caberá o leitor  e a leitora decifrarem será:  o que faz a dança se entrelaçar com a vida ao ponto de desconhecermos se é a vida dedicada à dança, ou se  a dança que é dedicada à  própria vida?



O filósofo grego Epicuro (341 a.C.) ensina que a felicidade está sustentada em três elementos essenciais para a vida humana: a liberdade,  a vida analisada e a amizade.   Pensar a felicidade na dança está em descobrir um tempo e  um lugar para ela em nosso corpo. Isso favorece investigar como o ato de dançar sustenta a minha liberdade. O segundo elemento,  uma vida analisada, corresponde a ocupação de um campo perceptivo na dança  para refletir sobre a própria existência. Por fim,  a amizade, o encontro inspirado pela dança explicita como quem dança partilha sua vida com os outros.

Vamos  atentar para  quem nos move.  E o Múltipla  acerta ao  homenagear Sandra Meyer Nunes.   Dançarina,  professora, doutora, pesquisadora, crítica de dança, palavras insuficientes para inventariar sua contribuição para a Dança em Santa Catarina. Muitas são as funções que tem desempenhado para responder  as perguntas  feitas por Jussara Xavier no dia mundial da dança à comunidade dos profissionais de dança:  “Dançar? Para que estudar dança? Para que ensinar dança? Para que uma faculdade de dança? Para que investir dinheiro em dança? Para que dançar? “   E  quem é afetado pela vida de Sandra Nunes, pode arriscar uma resposta: para ser feliz!  Pois,  Sandra com sua amizade acolhe o que é singular na pluralidade mundana,   escreve para não esquecer a quem se ama,  e ensina  que a dramaturgia de um corpo manifesta uma  estética e também uma  ética.

O Múltipla Dança ao sobrepor diferentes práticas e discursos, privilegiando a aventura do conhecimento e a diferença como potencial instauradora de novas perspectivas  desafia manter viva a  vontade de perguntar. E numa atmosfera do jardim epicurista oferece para quem aprecia  a dança, encontros oportunos  para cultivar as amizades e criar dança com liberdade, e diálogos  para  analisar a vida.  

Estarei por aqui nos próximos dias para descrever,  narrar como a vida dos profissionais  de dança, vivida em busca  da sustentação do próprio gesto,   pode nos provocar a indagar   acerca de uma existência livre e feliz. Eis a proposição: escreva, dance e pergunte: dançar para quem?
Ida mara Freire
Ida.mara.freire@ufsc.br
Professora Associada  do Centro de Ciências da Educação da UFSC
Pós-Doutorado em Dança pela Universidade  da Cidade do Cabo, África do Sul
Publicado no Jornal Notícias do Dia em 20/05/2014

domingo, 18 de maio de 2014

Múltipla Dança 2014

Festival Múltipla Dança – ano 7

Webnode
O que ou quem te move? Por quais forças você é tomado? Múltipla Dança é um encontro forjado em função do desejo que, conforme o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) é em si mesmo “revolucionário”, pois quer sempre mais conexões e agenciamentos. A edição 2014 pretende sustentar a experimentação do “eu” que se constitui, antes de tudo, como desejo. Não se trata de exaltar modos de narcisismo e individualismo mas, ao contrário, de alimentar uma abertura às forças e multiplicidades que atravessam o corpo, aumentando sua potência de ser e agir. Sabemos que todo corpo é biografia, mas como pesquisá-lo, conhecê-lo, dizê-lo? Como biografar um corpo, articulando real e ficção, privado e público? O programa destaca o interesse de investigadores e artistas na prática da biografia - escrita, falada, filmada, dançada – na área da dança. 
Múltipla Dança segue organizando e buscando encontros, pois entende que justo eles nos levam a pensar-criar. Na construção deste tempo-espaço comunitário, oferece diferentes oportunidades de interação, de exercício e aprofundamento de nossa capacidade relacional: além dos espetáculos, a programação inclui aulas práticas e conversas com os criadores convidados. O foco é a dança contemporânea: cena complexa, acelerada por metamorfoses e contaminações entre corpos, artes e mundos. Cena cujo corpo se multiplica num plano de ações, buscando sempre a incorporação de novos estados, imagens, sentidos, efeitos e habilidades. É possível apreender tal modo de dança em sua singularidade? Em 2014, vamos também
(re)descobrir a tarefa da crítica. 
Seguimos com o propósito de sobrepor diferentes práticas e discursos, privilegiando a aventura do conhecimento e a diferença como potencial instauradora de novas perspectivas. Manter viva a pergunta é o convite, e um começo. Já o disse Pina Bausch (1940-2009), ao receber a láurea honoris causa na Università degli Studi di Bologna, em 1999: “As perguntas não param nunca e nem a busca. Nessa existe algo de infinito, e esta é a coisa bela. Ao olhar nosso trabalho, tenho a sensação de ter apenas começado”. Sandra Meyer, homenageada desta edição, comprova: mesmo tendo já feito muito, continua... leva a sério o desejo, sabe que ainda há muito a fazer. Especialmente para ela, mas também para todos os profissionais incansáveis da dança, nossa reverência.
Venham todos! “Sempre há o que ver” (Rainer Maria Rilke).
Jussara Xavier e Marta Cesar
Curadoras do Múltipla Dança