Escrituras Coreográficas
A
chuva e o frio não foram impedimentos para
plateia do Múltipla Dança
participar assiduamente das oficinas, dos
diálogos e dos espetáculos e escrever suas “corpografias”: uma escrita movente,
articulada no deslocamento do gesto que escreve para o gesto que dança, notações das marcas de passos, lapsos
e lampejos da memória intercorporal entre o dançarino e a plateia. Experimentação
identificada nas proposição das Múltiplas
Escritas, coordenado por Anderson do Carmo e Sandra Meyer Nunes, cujo
procedimento para os interessados em escrever um texto sobre as atividades da
programação deixavam uma pista de pensamento para quem escrevesse o próximo texto. Com isso se pratica a reflexão na dança, enfatizada na contaminação
mútua de quem escreve e lê acerca da experiência do dançar, presente no
exercício crítico debatido na tarde de
quarta-feira no Centro de Desportos da
UFSC, no Diálogo entre
Ana Francisca Ponzio, Joubert
Arrais e Sandra Meyer , no qual a jornalista Néri Pedroso tematizou a
importância do discurso crítico como ponte
e não como barreira entre a obra do artista e o público.
Escrituras que o leitor e a leitora espero terem tido durante a semana a oportunidade de apreender, seja ao testemunhar no solo “Solidão Pública” de Adilso Machado, um partir de si mesmo em direção a um outro que nunca se alcança, sensação desértica da afetividade aterrissadas pelas composições de Tom Monteiro.
Michele Moura por Cristiano Prim |
Talvez, no trabalho da dançarina Michele Moura,
“Fole”, a percepção de vocês tenham se
alterado, por segundos, quem não notou em seu próprio corpo o eco dos
vocalizes amplificados por Rodrigo Lemos, ou como as reverberações dos intensos
movimentos criam histórias de corpos desnudos,
destituídos de um querer que nem todos querem ver. O solo de Alejandro Ahmed, “Sobre
Expectativas e Promessas” se
instala em uma vontade de desaparecimento. Acompanhado de Hedra Romagnani ocupam
o espaço vital deixando rastros sonoros e luminosos de seus movimentos
que desafiam o espectador em busca de autoria. Dilema
contemporâneo que junto com Ítalo
Calvino nos induz desvendar quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de leituras, de imaginações,
de movimentos. “Maneries”, espetáculo
que encerrou o Múltipla Dança no
domingo, dirigido por Luis Garay, expõe o corpo como produtor e receptor de possibilidades linguísticas, que a dançarina Florencia Vecino, banhada pela luz de Eduardo Maggiolo, forma e, com a música de Mauro
Ariel Panzillo, transforma diante
do nosso olhar contemplativo.
O
Múltipla Dança, confirmando aposta inicial da curadoria, apresentou em sua diversa programação a dança para além de
um eu individual, a dança que dá lugar para
a ausência, a dessemelhança, ao que está só, que abre espaço para a
descontinuidade e promove uma escrita crítica e criativa para fazer falar o que não
tem palavra: o ninho de João-de-Barro na
sacada, os utensílios de uma bolsa
alheia, o pescar a luz com paciência no poço da escuridão...
Ida
mara Freire ida.mara.freire@ufsc.br
Professora Associada do Centro de
Ciências da Educação da UFSC. Pós-Doutorado em Dança pela Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul.
Publicado no Jornal Notícias do Dia em 28/05/2014