Julia Terra Denis Collaço[1]
Um
canto ecoa no universo – essa voz vem de onde? – ele parece anunciar uma
profundidade reveladora: o lamento, a gratidão, a dor, a ternura, repercutindo
uma espécie de retorno ao pó que o constitui, uma ancestralidade que o acolhe.
Os corpos dançantes se projetam um atrás do outro, ao fundo uma projeção das
sombras que surgem dos próprios corpos, elas dão continuidade àquilo que vemos.
O passado posto no presente. No palco, corpos que bailam firmando uma potência
de vida, sendo ardentes pelos ritmos ali mesmo entoados, são gestos que
exprimem o vivido, tudo isso compõe o espetáculo “Skeleton Dry”, de Gregory
Maqoma[2]. Um silêncio... que se atravessa como o
impensável, mas possível na criação dançante. No rastro desse silêncio, lemos
algo, pois afinal na arte podemos ler uma história silenciosa, já nos sinaliza
Merleau-Ponty[3]. O que
lemos é um duo de dançarinos que parece escrever com os seus corpos os extremos
limites de um ao outro, uma áspera resistência ao outro, o outro é apresentado
como uma voz discordante. Os corpos, então, dançam com um objeto na mão,
imprecisão na identificação do objeto: foto, imagem ou espelho? Eis que os
objetos parecem trazer o outro como espelho do problema do eu (MERLEAU-PONTY):
avivando aqui o poema de Clarisse Lispector em que diz “o outro dos outros era eu”. Realça a necessidade de cessar as próprias
vozes despertando para um esvaziamento e, nesse vazio, surge a possibilidade de
acolher o outro. Um diálogo com o diferente, ele lhe deforma no mesmo instante
em que lhe constitui. O discordante provoca fissuras e deforma o outro: um
corpo que se de(forma), uma
de(composição) de corpos. E dessa decomposição um novo espaço geográfico,
espaço para a metamorfose, um “habitar entre” os corpos. Um pequeno grupo canta
e dança a possibilidade. Olhar ou não? Permitir-se ou não? Os corpos cambiam,
giram, saltam, atravessam um ao outro, reviram um ao outro como que prestes a
modificar as verdades pré-existentes, lançam-se no espaço para uma nova
criação, para a elaboração de novos conceitos. Nasce uma escuta que permite
entender uma realidade que falta a nós. O mundo nos devolve nossa imagem
(Merleau-Ponty, 1990). Fica apenas uma pergunta: como podem os ossos reviver?
Um canto ecoa no universo, ele parece anunciar uma profundidade reveladora:
agora um retorno a mim mesmo transformado pelo outro, “já há uma espécie de
presença do outro em mim” (Merleau-Ponty, 1990, p. 313). O mundo do silêncio
como um canto ressoante do entrecruzar da imagem do eu e do outro.
[1] Doutoranda do curso de
Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina. Resenha crítica apresentada como requisito final da disciplina
Estética do Silêncio: Alteridade, Arte e Educação.
[3] MERLEAU-PONTY, Maurice. A experiência do Outro. In: _________________.
Merleau-Ponty na Sorbonne resumo de cursos psicossociologia e filosofia.
Campinas SP: Papirus, 1990.
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