sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Skeleton Dry: o rastro do silêncio dançante



Julia Terra Denis Collaço[1]
Um canto ecoa no universo – essa voz vem de onde? – ele parece anunciar uma profundidade reveladora: o lamento, a gratidão, a dor, a ternura, repercutindo uma espécie de retorno ao pó que o constitui, uma ancestralidade que o acolhe. Os corpos dançantes se projetam um atrás do outro, ao fundo uma projeção das sombras que surgem dos próprios corpos, elas dão continuidade àquilo que vemos. O passado posto no presente. No palco, corpos que bailam firmando uma potência de vida, sendo ardentes pelos ritmos ali mesmo entoados, são gestos que exprimem o vivido, tudo isso compõe o espetáculo “Skeleton Dry”, de Gregory Maqoma[2].  Um silêncio... que se atravessa como o impensável, mas possível na criação dançante. No rastro desse silêncio, lemos algo, pois afinal na arte podemos ler uma história silenciosa, já nos sinaliza Merleau-Ponty[3]. O que lemos é um duo de dançarinos que parece escrever com os seus corpos os extremos limites de um ao outro, uma áspera resistência ao outro, o outro é apresentado como uma voz discordante. Os corpos, então, dançam com um objeto na mão, imprecisão na identificação do objeto: foto, imagem ou espelho? Eis que os objetos parecem trazer o outro como espelho do problema do eu (MERLEAU-PONTY): avivando aqui o poema de Clarisse Lispector em que diz “o outro dos outros era eu”.  Realça a necessidade de cessar as próprias vozes despertando para um esvaziamento e, nesse vazio, surge a possibilidade de acolher o outro. Um diálogo com o diferente, ele lhe deforma no mesmo instante em que lhe constitui. O discordante provoca fissuras e deforma o outro: um corpo que se de(forma),  uma de(composição) de corpos. E dessa decomposição um novo espaço geográfico, espaço para a metamorfose, um “habitar entre” os corpos. Um pequeno grupo canta e dança a possibilidade. Olhar ou não? Permitir-se ou não? Os corpos cambiam, giram, saltam, atravessam um ao outro, reviram um ao outro como que prestes a modificar as verdades pré-existentes, lançam-se no espaço para uma nova criação, para a elaboração de novos conceitos. Nasce uma escuta que permite entender uma realidade que falta a nós. O mundo nos devolve nossa imagem (Merleau-Ponty, 1990). Fica apenas uma pergunta: como podem os ossos reviver? Um canto ecoa no universo, ele parece anunciar uma profundidade reveladora: agora um retorno a mim mesmo transformado pelo outro, “já há uma espécie de presença do outro em mim” (Merleau-Ponty, 1990, p. 313). O mundo do silêncio como um canto ressoante do entrecruzar da imagem do eu e do outro.


[1]                Doutoranda do curso de Educação do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Resenha crítica apresentada como requisito final da disciplina Estética do Silêncio: Alteridade, Arte e Educação.
[2]                MAQOMA, Gregory. Skeleton Dry. 2009
[3]                MERLEAU-PONTY,  Maurice.  A experiência do Outro. In: _________________. Merleau-Ponty na Sorbonne resumo de cursos psicossociologia e filosofia. Campinas SP: Papirus, 1990.

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