As amarras do outro
Por Ida Mara Freire(*)
Ao ver uma bateria de instrumentos de percussão no palco, o espectador apreciador da dança saberá de antemão que se trata de uma dança contemporânea. Sendo assim, o imprevisto e a improvisação e outros elementos poderão estar presentes no espetáculo Percepção do outro, da Siedler Companhia de Dança, composta por Elke Siedler, Maria Carolina Vieira e Thiago Schmitz.
Os traços comuns entre o ballet e a dança moderna são identificados por José Gil a partir de três princípios: o princípio da expressão almeja que os movimentos sejam expressão das emoções; um segundo princípio, de sublimidade, afirma o primado do céu e do inteligível sobre o sensível; e o princípio de organização, que torna o corpo do bailarino, ou do grupo de bailarinos, um todo orgânico cujos movimentos convergem para um fim. A dança contemporânea rompe com tais princípios, ao recusar as formas expressivas, e apostar o descentramento do espaço cênico, a independência da música e dos movimentos, a introdução do acaso na coreografia, como bem faz Merce Cunningham.
Em gestos erigidos na improvisação e no imprevisível, Elke Siedler concebe e dirige Percepção do outro. A definição de improviso abarca o efeito súbito, e elucida que algo foi realizado sem preparação prévia. Improvisar na dança, ao contrário de que muitas pessoas pensam, não significa apenas soltar e relaxar no fluxo de uma dada seqüência de movimentos. Vai mais além: improvisar um gesto dançante requer a intuição da experiência do movimento. Aquela intuição entendida por Henri-Louis Bergson como “a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, conseqüentemente, de inexprimível”.
O foco da cena está em perceber o outro. A luz dirigida por Rafael Apolinário permitiu, a quem assistiu ao espetáculo, a distinguir o movimento relacionado com cada elemento presente no cenário. Num jogo de luz e sombra, um foco ativo insinuava uma direção sinestésica: o som do Rock and roll de Alexei Leão, as almofadas vermelhas e pretas de diferentes formatos e tamanhos, os pés calçados ou não.
O trabalho corporal dos integrantes da Siedler Companhia de Dança se inicia durante as oficinas de dança que a coreógrafa Elke Siedler oferece no CIC – Centro Integrado de Cultura. É neste contexto que ela escolhe os dançarinos e os prepara para um espetáculo. O ensino da dança torna-se um fator relevante nesse processo, pois possibilita que Siedler pesquise e desenvolva uma linguagem específica, oriunda de outras experiências de movimento vertidas da própria dança ou das artes marciais, por exemplo. Há também um preparo do corpo do dançarino, pautado na Yôga e Pilates. A coreógrafa criou o espetáculo Percepção do Outro levando em conta a experiência de cada um de seus dançarinos: Maria Carolina, além de sua experiência como ginasta rítmica, também estuda teatro; nos gestos híbridos de Thiago Schmitz identifica-se a dança de rua.
Esse processo se assemelha muito ao da coreógrafa estadunidense Anna Halprin. Interessada em contrapor movimentos estabelecidos a priori para uma coreografia, Halprin explora a alternativa de construir estruturas de movimentos improvisados para suas performances. Ela percebe, por um lado, a improvisação como possibilidade de desenvolvimento pessoal para o dançarino, e por outro, um modo de colaboração entre dançarinos e coreógrafos. Com isso, expande a noção modernista de subjetividade, formalmente aplicada à investigação do coreógrafo. Nessa sua proposição, cada dançarino explora sua própria subjetividade. Além disso, tem-se a possibilidade de tornar o processo de criação visível para a platéia.
O que acontece com o espectador ao ver o outro dançar? Mentalmente poderia planejar um futuro, vinculado ao gesto passado, antecipando ações desejáveis. Mas seria assim capaz de prever que o corpo será protegido por uma almofada, ao chegar ao chão? Talvez a composição coreográfica vislumbre um caminho bem traçado no palco, mas a improvisação é uma entrega ao imprevisto e ao improvável. Deste modo, o improviso é tão consistente quanto a percepção, são tramas da mesma tecelagem gestual.
As mangas longas de um dos figurinos, os fios de cabelos alcançam o outro. Os tentáculos tateantes estão atados a nós, da mesma maneira que estamos enlaçados em nós mesmos. Ainda que possamos perceber tais amarras ora como empecilhos para a nossa liberdade ora como degraus para a nossa comodidade, o outro se configura como passos no abismo em direção a uma ambígua felicidade. Nesse espaço vital da existência humana criamos pontes – dançamos. Clarice Lispector, dedicada a perceber o outro eu, veio-me à lembrança ao escrever este ensaio.
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu.
Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil.
Minha experiência maior seria ser o outro dos outros:
e o outro dos outros era eu.
Seria a percepção do outro regulada pelo aprisionamento e pela incerteza? Num momento abraçados pelo gesto de braços e mãos ausentes, distanciamento do corpo. O que restou do amor. Em instantes um travesseiro nos é dado para amortecer a queda. Surpreendidos com o movimento que revela um cuidado, confortavelmente reconhecemos a sensibilidade acolhedora do outro com a nossa dor. Somos verdadeiramente livres dos outros? Embora a liberdade seja uma opção, ela não elimina o risco, requer uma decisão contínua que se renova no transcorrer dos acontecimentos favoráveis e desfavoráveis, reflete Nicola Abbagnano. “Ser livre”, escreve esse autor, “significa manter-se fiel a si mesmo, não traindo o próprio dever e salvando a seriedade e a consistência do mundo e a solidariedade inter-humana”.
O sentimento que fica após assistir esse espetáculo é de se tentar “calçar os sapatos do outro” ou até mesmo se colocar naquele lugar do corpo do outro, e assim indagar: poderemos caminhar juntos?
(*) Professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Diretora e coreógrafa do Potlach Grupo de Dança. Escreve ensaios sobre diferença, dança e cegueira.
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