sábado, 28 de fevereiro de 2009

Dança e Cegueira

Dança e Cegueira: trajetórias invisíveis na formação de professores
Dance and Blindness: Invisible paths in the teacher’s education

Resumo
O direito à educação tem possibilitado aos jovens e adultos com necessidades educacionais especiais irem em busca de qualificação em várias áreas do conhecimento do ensino superior brasileiro. As artes são uma delas. O artigo se propõe a investigar, a partir de um projeto sobre o ensino de dança para estudantes com cegueira, as “trajetórias invisíveis” presentes na formação de professores nos cursos de Pedagogia. E examinar descritivamente os conceitos de cegueira, corpo e dança visando a contribuir com a consolidação do ensino da dança nas escola públicas brasileiras.

Palavras-chave: dança, cegueira, educação, expressão, corpo.

Abstract
Dance and Blindness: Invisible paths in the teacher’s education

The right to the education has been making possible for the youths and adults with special education needs to go in search of qualification in several areas of knowledge of the Brazilian higher education. The arts belong to one of them. The article aims to investigate, starting from a project on the dance teaching for students with blindness, the present "invisible paths" in the teachers' education. And to examine descriptively the concepts of blindness, body and dance. I hope this article can bring some contribution to consolidate the teaching of dance in them Brazilians public school.

Key-words: dance, blindness, education, expression, body.

Introdução
“O real deve ser descrito, não construído ou constituído.” recomenda Merleau-Ponty (1996 p.5). Esse artigo examina a relação entre corpo, estética, linguagem e cegueira, tendo como ponto de partida as atividades de dança oferecida para pessoas com e sem o sentido da visão. Introduzo o texto com um breve panorama do ensino da dança no Brasil, com intuito de investigar as implicações desse ensino para estudantes com cegueira. Em seguida descrevo sobre a minha percepção da diferença no contexto educacional brasileiro. Argumento sobre o distanciamento entre professor e o estudante muitas vezes ocasionado pelo pouco conhecimento desse que ensina sobre a experiência vivida daquele que aprende. Proponho o diálogo como elo entre eu e o outro. Na segunda parte, apresento as narrativas dos estudantes com e sem cegueira fundamentada em Merleau-Ponty e examino os conceitos de cegueira, corpo e dança. Compreendo a cegueira como experiência perceptiva. E apresento o corpo e a dança como fenômeno da expressão. Na última parte, saliento sobre a contribuição dos estudantes com cegueira para o desenvolvimento da pesquisa sobre o ensino da dança.

O ensino e a formação do professor de dança no Brasil

Pode parecer redundância falar sobre “ensinar a dançar” num país conhecido mundialmente pelo Carnaval e as Escolas de Samba. Mas, não falar pode significar deixar-se levar pela fantasia. Inicialmente, dois aspectos serão brevemente abordados nesta discussão, primeiro o ensino da dança e segundo a formação profissional do artista da dança. Atualmente, no Brasil o ensino da dança vem sendo oferecido em três instituições distintas: na educação básica, nos cursos livres e no ensino superior. A promulgação da Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 em dezembro de 1996 explicita que as quatro linguagens artísticas, a saber, artes visuais, dança, música e teatro; devem ser contempladas no Ensino da Arte no país. Afirmativamente, no segundo semestre de 1997 o Ministério de Educação e Desportos (MEC) publicou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) elaborado por equipes de profissionais especialistas com vistas à indicar, dentre outros, parâmetros para a abordagem da dança como área de conhecimento no contexto escolar.

Esse destaque à dança trouxe à tona a ausência de profissionais qualificados para ensiná-la. É evidente que o crescente número de cursos superiores de formação em dança; o imprescindível apoio das agências de fomento à área da dança; a criação de grupos de pesquisa; a ampliação do oferecimento de cursos de dança nas oficinas culturais; e o impacto das amostras e festivais nacionais e internacionais de dança no público, tem alterado o panorama da dança brasileira. No entanto, o ensino da dança nas escolas públicas tem sido deixado sob a responsabilidade de professores, que na maioria dos casos não tem experiência ou mesmo reflexão pedagógica com a dança, coibindo assim seu caráter artístico-educativo. (Marques, 2003; Strazzacappa, 2004)


A temática do ensino da arte para estudantes com necessidades educacionais se mostra incipiente nas pesquisas brasileiras. As políticas educacionais públicas de inclusão social dessa minoria tem tido como companhia o apelo dos meios de comunicação que misturam direito civis, informação, ficção, religiosidade e assistência social. Isso exige que público forme uma opinião oriunda de uma reflexão e crítica nem sempre disponível. Esse discurso, um tanto obscuro encontra eco no ensino da dança para essas pessoas, ele tem sido praticado muitas vezes com insipiência em muitos cursos livres. Neste sentido, parece urgente a produção de conhecimento nesta área visando a fundamentar tanto a ação quanto a reflexão docente presente neste contexto.


A percepção da diferença no ensino da dança

Em minha própria história de vida a percepção do outro sobre a diferença sempre estiveram presentes. Como mulher afro-brasileira apareço singular em uma sociedade plural. Destarte, imbricada na minha diferença percebo e sou percebida pelo mundo. As descrições que oro apresento estão impregnados da experiência com dança por mim vivida. Numa perspectiva positivista isto poderia ser uma atitude não recomendável ao se fazer pesquisa. Mas, o que faz sentido atentar aqui é “que eu e o mundo somos um no outro” (Merleau-Ponty, 2000 p.121 ). Há algo presente na minha experiência de vida que está presente na vida de outrem. Na premente objetividade da experiência do diálogo proporcionado pela dança isso pode ser desvelado.

Hannah Arendt (2000 p. 82) examina essa objetividade ao verificar que foi após longa experiência de convivência e numa contínua conversa que os gregos descobriram que mundo que temos em comum é habitualmente considerado sob infinito número de ângulos, aos quais correspondem os mais diversos pontos de vista. O grego aprendeu a intercambiar com os seus concidadãos o modo que como mundo lhe parecia e se lhe abria. Deste modo, destaca a autora os gregos aprenderam a compreender – não a compreender um ao outro como pessoas individuais, mas a olhar sobre o mesmo mundo do ponto de vista do outro, a ver o mesmo em aspectos bem diferentes e freqüentemente opostos. Assim, espero que este trabalho sobre a percepção da diferença no contexto do ensino da dança possa contribuir com o diálogo entre “nós” e “eles”.

Os argumentos que apresento a seguir revelam que a distância entre o aluno e o professor vidente pode se dá pelo desconhecimento por parte deste último sobre a experiência com a cegueira do aluno. Também, apregôo o diálogo como uma ponte que me vincula com outro. Uma das lembranças que trago em mim sobre este distanciamento entre professor e aluno, se mostra no cotidiano da inclusão educacional. Foram várias vezes que me deparei com professores lutando consigo mesmo para lidar com a diversidade cultural e a as diferenças individuais presentes em seu ambiente de trabalho. A inclusão escolar e o respeito às diferenças individuais aduzem novos desafios para a educação em geral e, a formação de professores em particular. Constatei enumeras vezes que a inabilidade de lidar com a diferença, provoca o afastamento corporal. Nega-se a possibilidade de estar próximo daquilo que não é familiar. Perceber a diferença pode ser dolorido, pois estamos saindo da nossa zona de conforto. Mas, o crescimento induz sair do casulo, ir a direção do outro. Perceber o outro eu. Tal atitude pressupõe uma dupla ação: se aproximar e conhecer. O contato com o diferente me afasta da minha própria ignorância. Meu corpo se expressa, de modo que percebo e sou percebida.

Como pesquisadora-dançarina atentei para o corpo: o meu, o do professor e do aluno como tecido de uma mesma carne, e indaguei se o corpo era o motivo do distanciamento será que não poderia também ser a via de contato, a ponte entre “nós” e “eles”. A vivência como dançarina suscitou em mim uma percepção peculiar do mundo; notei as diferentes nuances em uma mesma experiência, e as múltiplas perspectivas de uma dada realidade. E isso alterou a minha compreensão do mundo. Assim, o crescente conhecimento da dança foi envolvendo minha vida como um todo. A dança não se restringia ao que o corpo vivenciava dentro do estúdio, ela se fazia presente no cotidiano. Claramente, constatei isso durante a pesquisa do doutorado ao observar como uma criança, com cegueira congênita em seus 18 meses de vida, explorava o espaço com percuciência; em contato com o chão arrastava-se atento às texturas, a temperatura, explicitava em seu corpo uma cartografia do seu entorno. Neste momento tive o insight de perceber a essência de um corpo que dança. Esse foi o primeiro passo no que diz respeito à conexão da dança e a cegueira.

O passo seguinte contribuiu significativamente para implementar o projeto de ensino de dança para jovens e adultos com cegueira. A participação em um intercâmbio envolvendo pesquisadores brasileiros e britânicos cuja meta foi a troca de experiência sobre o ensino de teatro e a da dança nas escolas públicas e na comunidade. Comparativamente evidenciei, de um lado que a expressividade da dança, a riqueza dos gestos e as manifestações populares eram um ponto forte no Brasil. Por outro lado, me deparei com a dura realidade que as nossas crianças e jovens não estavam tendo a oportunidade de desenvolver suas habilidades artísticas corporais no contesto escolar. Como contribuir para que alteração desse quadro. A partir da inserção profissional no ensino superior, formando professores para trabalhar com alunos com cegueira, iniciei em 1998 o projeto que envolvesse esses estudantes no ensino da dança. Por conseguinte, tive a preocupação de esclarecer inúmeras vezes que o intuito do projeto não visava à assistência social, nem de fazer exploração no “mundo na cegueira”. Explicitei que a atitude era de examinar como a dança favoreceria apreender concomitantemente a cegueira como uma experiência perceptiva, e o professor como espectador, que questionava a postura de indiferença e de espasmo diante da diferença. Em suma, na proposição desse projeto aludo à busca de uma experiência mútua e intencional sobre o ver e o não ver.

A seguir, inspirada na filosofia de Merleau-Ponty examino os conceitos sobre cegueira, corpo e dança com o intuito de desvelar as trajetórias invisíveis presentes na formação de professores respaldada pela experiência do ensino de dança para jovens e adultos com cegueira e alunas do curso de Pedagogia. Minhas expectativas com esse trabalho é encontrar fortes argumentos que ancorem a proposição do ensino da dança no Curso de Pedagogia, de forma que as crianças e os jovens, inclusive os com necessidades educacionais especiais, possam aprender a apreciarem a dança como uma atividade curricular nas escolas públicas brasileiras, e não apenas em cursos livres.


A cegueira como experiência perceptiva

O que é cegueira? Essa questão começou a fazer eco durante minhas primeiras aulas no curso de formação de professores para alunos com necessidades educacionais especiais. Ao ensinar sobre as terminologias adotas na área, percebia uma certa lacuna entre a teoria e a prática, por exemplo entre o conceito de cegueira e a experiência de vida de quem era categorizado como cego. Também, fui percebendo que havia uma discrepância entre a definição que a professora que enxerga tinha sobre a cegueira com a do próprio aluno que ela ensinava e que não enxergava. Chamou-me atenção algumas definições sobre a cegueira. Verifiquei, por exemplo, aquelas pautadas somente na acuidade visual me pareceram insuficientes para que eu conhecesse mais sobre a aluno que não enxergava. Comecei a perceber a complexidade do termo cegueira à medida que aprofundava minha convivência com pessoas com cegueira.

Procurando um sentido que muitas vezes as próprias palavras velam, discuto agora como a cegueira vem sendo definida e interpretada tanto por aqueles que vêem como para aqueles que não. Sei, que assim procedendo estarei revelando minhas próprias concepções e idéias sobre a cegueira. Porém, aprendo que é na experiência do diálogo que se constitui um terreno comum entre eu e o outro. Como examina Merleau-Ponty:

“meu pensamento e o seu formam um só tecido, meus ditos e aqueles do interlocutor são reclamados pelo estado da discussão, eles se inserem em uma operação comum da qual nenhum de nós é o criador. Existe ali um ser a dois, e agora outrem não é mais para mim um simples comportamento em meu campo transcendental, aliás nem eu no seu, nós somos, um para o outro, colaboradores em uma reciprocidade perfeita, nossas perspectivas escorregam uma na outra, nós coexistimos através de um mesmo mundo. (Merleau-Ponty,1994,p.474)

Portanto, o que se indaga aqui não é somente o que é a cegueira, mas como e por quem ela é percebida. As definições denotam, uma percepção de si , do outro e do mundo e “aderem ao meu corpo como a túnica de Néssus”. Merleau-Ponty (2002, p. 171) se refere à túnica de Néssus para descrever a universalidade do sentir, esclarece que “é sobre essa que repousa nossa identificação, a generalização de meu corpo, a percepção do outro”. Sadao Omote (1994, p.47), por exemplo, alterca as abordagens centradas na pessoa com deficiência alegando que essas ignoram um ponto central que é a construção social da deficiência. O que o autor, nos alerta é que não se pode ignorar o outro na vida de uma pessoa com cegueira. E isso se evidencia quando pergunto para essa pessoa o que é a cegueira? Suas respostas mostram o outro. A percepção do outro para quem não vê é silenciosa, não se trata de um objeto que está diante de si, mas, de um convite, às vezes um confronto, ou ainda, um desafio para que ele se desdobre, se descentre.

Taís, uma adolescente participante da pesquisa, narrou para mim o seguinte episódio:

“Um dia eu estava no centro [da cidade] andando com alguém, daí eu fui para casa. Aí, na hora que encontrei uma pessoa, assim, que chegou em mim, esbarrou em mim e nem pediu desculpa. Eu estava com a bengala, assim sei lá, bengala dobrada... A pessoa nem chegou em mim e nem pediu desculpa. Daí, eu não entendi, mais nada... simplesmente. É fiquei nervosa, assim e fui embora... Ali no corrimão do terminal novo, a gente passa por ali, eles nem pedem desculpas, a gente pede licença e ninguém dá!”

Talvez, a indignação de Taís, diz respeito a esse outro que ela sente em si. O fato desse não exprimir com palavras, ou mesmo um toque afetuoso, um pedido de desculpa faz que ela vivencie a opacidade da percepção do outro sobre si mesma. Ela sente o outro, porém o outro silencia o que sente por ela. Deste modo, a cegueira se define nas reações do outro. “(...) a objetivação de cada um pelo olhar do outro só é sentida como penosa porque ela toma o lugar de uma comunicação possível”, escreve Merleau-Ponty,(1994, p. 484). Neste caso, há de assumir que somos parte de um mesmo tecido, Essa aderência incomoda, causa dor, como narrado na história de Hércules. Será esta a possibilidade intersubjetiva entre quem vê e quem é visto?

Parece-me então que para definir a cegueira faz-se necessário, ir além daquilo que é dado. Devo me propor conhecer a história daquele corpo como um entrelaçamento do meu próprio corpo. A história de sua vida perpassa a história da minha vida, configurando-se um modo peculiar de ser no mundo. Seres singulares, contribuindo para a pluralidade do mundo. Um ser que não usa a visão como sentido prioritário para conhecer o mundo. A cegueira deixa de ser objeto e passa a ser uma experiência perceptiva. Trata-se mais de lidar com a invisibilidade que com a escuridão. A cegueira está para quem não vê , assim como a invisibilidade está para quem vê. Apresentar a cegueira como uma experiência me possibilita, apresentar minha vida aberta ao outro. Quando entrevisto pessoas com cegueira sinto que minha fala é acolhedora. Quando indago: “poderia me falar sobre sua experiência com a cegueira?” ao introduzir minha fala dessa maneira, a comunicação acontece, o outro fala de sua experiência de vida, nessa fala faz que eu me reconheça nele, e ele em mim. Somos um no mundo, com a túnica de Néssus sobre nós, a universalidade do sentir nos adere.

Se por um lado, a percepção tem uma característica de nos fazer desejar arrancar a túnica do nosso corpo, em virtude da dor que nos causa, qual será então nosso destino, será o mesmo de Hércules? O contato com o outro, talvez, possa deixar de representar somente a nossa a morte, mas quem sabe, também a nossa libertação. A dança é uma possibilidade de co-existência, ser um com outro no mundo. No próximo item tentarei explicitar o diálogo entre jovens e adultos com cegueira e as alunas do Curso de pedagogia participantes de um projeto de dança examinando os conceito de corpo e dança.


Corpo, Dança e Expressão Fenomenológica

“Na dança a gente tem que fazer, tentar... com a cegueira também. Porque se você tem a cegueira você vai ter que dançar com ela. Aí você tem que fazer na dança o melhor possível, nem que não enxergue. Tenta, assim, tentar entender o que está fazendo, através do sentimento, entender com os sentimentos não com os olhos, entendeu? Com outra parte, com outras coisas para você conseguir fazer a dança, porque com os olhos você tem a cegueira e não vai conseguir ver, os exercícios que estão fazendo da dança, você vai conseguir através dos braços ou através da fala, para conseguir fazer a dança. Eu acho isso.” (José, dançarino não visual)

“Eu acredito que quando tu fala dança parece que tu está como espectador ou observando algo. Quando tu fala dançar me remete a uma ação. Então vem o dançar. Quando tu dança é... tem todo o processo criativo e o envolvimento da dança, tu vai sentir, vai observar de um determinado foco. Parece que quando tu vê a dança tu está vendo o todo é nesse sentido. Não sei se deixei claro.
(Albertina, estudante do curso de Pedagogia)

O corpo do dançarino com e sem visão faz com que eu reveja meu julgamento sobre o que é corpo, o que é dança, o que é belo, e essencialmente o que é ver. Pois, o que está sendo apresentado ali é muito mais além do que o evidente. O olhar fenomenológico sugere que o espectador veja, observe várias vezes aquele corpo em cena, veja-o em diferentes perspectivas e distâncias, olhe atentamente, preste atenção nas partes e no todo, apreenda cada detalhe.

Embora possa parecer paradoxal um estudo sobre cegueira enfatizar tanto o papel do ver, assim como Merleau-Ponty (2000) sugere que o visível e o invisível resultam ser dois aspectos de uma mesma realidade; suponho que o ver e o não ver sejam, também faces diferentes de uma mesma moeda. Para elucidar essa suposição talvez seja necessário ter em mente a questão: O que é ver? O referido autor explora essa indagação ao desvelar aspectos obscuros do entendimento envolto da fé perceptiva; primeiramente ele busca explicitar a afirmação que o mundo é aquilo que vemos, e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo. Em seguida, desdobra a questão em duas: o que é ver e o que é nós.
Ao examinar mais detidamente sobre o ver, noto que o autor da obra O olho e o espírito, encontra no pintor um exemplo da fé perceptiva, ou seja, a crença inabalável no mundo da percepção, sem a qual o artista não poderia realizar sua obra. E isso se dá, por exemplo, quando o pintor empresta seu corpo ao mundo e o transforma-o em pintura. Merleau-Ponty esclarece (1980: 86): “Meu corpo móvel conta no mundo visível, faz parte dele, e é por isso que eu posso dirigi-lo no visível”. Deste modo, escreve o filósofo: “a visão pende pelo movimento. Só se vê aquilo que se olha”. Indica assim onde reside o enigma: “meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível” (1980:86).

A partir da narrativa escrita, falada ou dançada, do corpo daquele que vê e do corpo daquele que não vê convido o leitor para aprofundar nosso conhecimento sobre a conexão entre o visível e o invisível. Pois, junto ao corpo está a linguagem. E, talvez, aqui podemos discutir aquilo que Merleau-Ponty indaga como o que é nós. Retomando a citação de Arendt sobre a intensa conversação dos gregos uns com os outros, para compreendermos pontos de vistas diferentes há a necessidade de nos comunicarmos. Após a percepção ser estabelecida “como a base a partir da qual construímos todas as nossas certezas, também nela se assenta o mundo da comunicação silenciosa, e nesse nível dá-se a expressão, seja ela como pintura, escrita, ou fala. É dessa maneira que surge a fala autêntica ou originária” (CARMO,2002: 106).

A noção de corpo que permeia a proposição de ensino dança aqui apresentada é descrita na obra de Fenomenologia da Percepção, para Merleau-Ponty o corpo é o lugar do fenômeno da expressão, no qual a experiência visual e a experiência auditiva, por exemplo, são pregnantes uma da outra, e seu valor expressivo funda a unidade antepredicativa do mundo percebido e, através dela, a expressão verbal e a significação intelectual. Meu corpo, examina o autor, “é a textura comum de todos os objetos e, é pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral de minha “compreensão”. É ele que dá sentido não apenas ao objeto natural, mas ainda a objetos culturais como as palavras”(1945, 271).
O corpo daquele que não enxerga nos coloca diante de um problema levantado por Merleau-Ponty (2000) sobre a nossa dificuldade de compreender - como podem os movimentos de um corpo organizado em gestos ou em condutas nos apresentar alguém que não seja nós – como podemos encontrar nesses espetáculos outra coisa a não ser o que neles pusemos. A resposta possível, me parece estar na percepção do outro e no diálogo, porém no tempo e espaço da dança.

Pautada na teoria da expressão fenomenológica (Müller, 2000), apresento a dança como expressão que propicia uma experiência de contato com o novo, e exprime a possibilidade de outras experiências. De maneira que “sei”, de antemão, que aquilo que faço pode ser feito por outro, assim como aquilo que o outro faz eu posso fazer também. Destarte, o outro e o mundo existem de antemão para mim como realidade expressa. Ou seja, junto ao meu campo de presença, se exprimem infinitos outros. Parafraseando Merleau-Ponty, o dançarino empresta seu corpo ao mundo e o transforma-o em dança.

Nesta alteridade radical que a cegueira se apresenta ao que vê, não se trata apenas de perceber o limite, mas pelo contrário identificar a co-existência. Em suma, ser o outro do outro. Aprendo ao dançar com quem não vê que, estabeleço novas referências em meu corpo, busco uma conexão com outro através da respiração, essa pode em alguns momentos se tornar audível e visível. Atento para o espaço tendo meu próprio corpo como ponto de partida. Busco um movimento autêntico forjado em meus sentidos e em minha memória corporal. Crio assim, uma dança oriunda de meus vividos. O contato com o outro convida a correr riscos, posso me perder, mas talvez achar algo em mim que estava perdido, também me desafia a ser receptiva e acolhedora. No espaço-tempo da dança o encontro com os meus infinitos outros. Mesmo num solo não danço sozinha, busco em mim não a cópia de um movimento, nem a repetição automática, mas uma nova leitura de um antigo gesto, “uma volta às coisas mesmas”. Retorno ao ponto que meu gesto desvela a co-existência com o outro eu mesmo.

Nessa dança o elemento principal de conexão com a platéia não é a narrativa ou a autobiografia, ainda que ela se guie a partir da experiência vivida, mas a percepção daquilo que está sendo expresso. O público é convidado a fazer a sua própria jornada. A dança vinculada com a narrativa pessoal, como analisa Albright (1997), propõe que o espectador se transforme numa testemunha. No meu entender, o que a dança como expressão proporciona não seria somente a transformação do papel de espectador, como também da sua própria experiência de observar. Logo, trata-se aqui da uma experiência estética que transforma tanto o dançarino como aquele que o vê. Eis um aspecto relevante para o ensino da dança: sua apreciação.

Poucos são os estudos brasileiros sobre a relação entre o público e o dançarino. No entanto, o crescimento do número de pessoas com diferenças físicas, mentais e sensoriais no contexto artístico têm suscitado uma silenciosa inquietação. Talvez, pelo fato de que até pouco tempo atrás os espetáculos de dança se constituíam como espaço da graciosidade e da perfeição, o corpo diferente desse ideal acaba por fim provocando uma instabilidade em nossos conceitos estéticos. Suponho que devemos aproveitar essa oportunidade para revermos nossos conceitos sobre o que é o belo. Nesse caso, o dançarino com cegueira, no palco, pode nos suscitar esse tipo de reflexão. Ele não está lá apenas por lhe ser de direito, tampouco para nos entreter, mas sua presença significa um convite à apreciação da dança, em sua inteireza e na sua invisibilidade. Uma dança que somente aquele corpo, em virtude de sua especificidade, pode executar. Há, então, de formar esse dançarino, seus professores e também sua platéia.

À guisa de conclusão reflito que a dança e a cegueira se apresentam como caminhos, ainda que transformadores, poucos conhecidos na formação de professores. Em contato com os dançarinos que não enxergam as alunas do curso de Pedagogia, participantes da pesquisa, se defrontam com seus preconceitos, percebem e aprendem a dialogar com a diferença. Os dançarinos com cegueira também expandem seu conhecimento sobre o ver e o não ver. Os participantes de ambos os grupos são convidados a revisar constantemente seus conceitos sobre percepção, corpo, dança e cegueira. Na experiência de vida, após uma aula de dança ou ao se deparar com o outro, todos começam a perceber modificações em se modo de ser no mundo.

Deste modo, enfatizo a contribuição das experiências de vida da criança, do jovem, do homem e da mulher com cegueira tem propiciado para a produção de conhecimento e mais além, tem possibilitado a compreensão da nossa existência num mundo de aparência que demanda espectador. Resta, pois formar professores como espectadores reflexivos e críticos, aptos para atuar com a diversidade presente no contexto escolar de modo criativo atentos para as interpretações que se pode ter do corpo diferente no contexto das artes. Espera-se que o professor perceba o aluno numa relação de co-existência, co-criadores do processo artístico. No entanto, parece imprescindível que o próprio professor apreenda a experiência estética a partir de seus vividos. António Nóvoa (1992:16) faz menção à autoconsciência como parte da identidade dos professores, considerando "que tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria ação”. Acrescenta: "É uma dimensão decisiva da profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste pensamento reflexivo".

O ensino da dança, aqui abordado, longe de visar o entretenimento, ou mesmo dar conta de uma agenda política temporária de inclusão social, convida o professor e a platéia a ver ou “não ver” para então conhecer. Essa atitude se caracteriza numa busca da compreensão sobre o nosso processo de vida.


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