sábado, 28 de fevereiro de 2009

O feminino e o Sagrado na dança

O feminino e o sagrado na dança: um ensaio sobre a coragem de ser
Autora: Ida Mara Freire, Universidade Federal de Santa Catarina
Palavras-chave: Dança, Existência, Fenomenologia; Título do Simpósio: Música e Dança: percepções sobre as práticas musicais e/ou de danças e suas relações de gênero.
Jornadas
No princípio... a quietude, o silêncio e a simplicidade; vivenciar a quietude do corpo, o silêncio da voz, e a simplicidade do pensamento.
A dança como jornada existencial é o tema deste ensaio. Em conversação com Paul Tillich (1886-1965), demais autoras e as Mulheres que jornadearam sua existência em minha companhia, descrevo esse processo criativo. O texto surge do projeto de pesquisa intitulado “Interrogação e Intuição: corpo, diferença e arte na formação de professores” (FREIRE, 2006). Nessa investigação propus um intento de dez jornadas que possibilitam a criação da própria dança a quem as perscrutem até o fim. A experiência envolve o corpo, a mente e o espírito; ou seja, a dança, a reflexão e a meditação. São dez encontros semanais com a duração de aproximadamente 50-60 minutos. Durante o intervalo de uma semana para a outra é proposto um conjunto de atividades criativas - por exemplo, escrita de um diário, recorte e colagem, desenho, dentre outras - com intuito de elaborar o trabalho corporal e preparar para a etapa seguinte. Trata-se de uma experiência lúdica, prazerosa e profunda com vistas ao bem-estar proveniente do auto-conhecimento. Até o momento foram aproximadamente 30 as participantes que fizeram as jornadas em dança. Sumariamente apresento o conteúdo do processo que será descrito mais detidamente a seguir. As cinco primeiras jornadas compreendem o momento de entrar no casulo, tecer ao redor de si mesma e conhecer o espaço vital. Voltar ao começo, despertar os sentidos, descobrir os movimentos e outras sensações, perceber o corpo como dádiva: a dança como coragem de ser. Na sexta e na sétima jornadas busca-se redescobrir o sentido da vida, recriar a própria existência: para isso é necessária a coragem de criar. Nas três últimas jornadas entrelaçam-se o feminino e o sagrado, celebramos a existência em sua plenitude e beleza: a liberdade do vôo exige a coragem de amar.

Dança enquanto jornada existencial: A coragem de Ser
A ação criadora investida na Primeira Jornada é conhecer o espaço vital. Partimos da noção de kinesfera, definida por Rudolf Laban (1879-1958) como a esfera do movimento ao redor do corpo É a esfera pessoal de movimento da qual nunca saímos, está sempre conosco, como uma carcaça. A kinesfera externa tem relação com a pele A interna tem relação com o esqueleto. A kinesfera média tem relação com os músculos. É gestual e formal. William Forsythe, propõe a noção de múltiplas kinesferas em diferentes partes do corpo, correspondendo a novos e diferentes centros do corpo (Rengel, 2000). O solo do casulo propõe as participantes dançar numa esfera escura. Buscar em seu corpo os registros, os traços gestuais, os fios existenciais e tecer com movimentos interligados, formando um bela trama, um aconchegante casulo. Um lugar que irá acolher, proteger, abrigar e transformar. Recomenda-se atentar para os fios, notar se são coloridos ou transparentes, sentir a textura e a espessura de cada fio. Tecer e dançar ao redor de si mesma.

Na Segunda Jornada a proposta está em reconhecer e vivenciar o movimento filogenético e ontogenético, ou seja, voltar ao começo. Nosso corpo se move como nossa mente se move. O desenvolvimento do movimento é trabalhado por Cohen (1997:4) tanto em termos filogenéticos como ontogenéticos. O desenvolvimento, explicita a autora, não é um processo linear, mas ocorre através de ondas sobrepostas, com estágios, contendo elementos de todos os outros. Em virtude de cada estágio estabelecer e apoiar o seu sucessivo, qualquer salto, interrupção ou falha para completar o estágio de desenvolvimento pode alterar o movimento e alinhamento na percepção, seqüência, organização, memória e criatividade. O desenvolvimento material inclui, além dos reflexos positivos, reações ajustadas e equilibradas, o padrão neurológico básico que é pautado por padrões de movimentos pré-vertebrados e vertebrados. O primeiro dos quatro padrões pré-vertebrados é a respiração celular, seguida da irradiação umbilical para a boca e do movimento pré-espinhal. Os doze padrões de movimentos vertebrados são baseados nos movimentos espinhal, homólogo, homolateral e contralateral. O sistema esquelético, formado por ossos e juntas, oferece ao nosso corpo a forma básica através da qual podemos nos locomover no espaço. Por esse meio, a mente também se organiza, promovendo suporte para nossos pensamentos.

“Entrei no casulo – e é lindo – porque de fato, sinto-me cuidando deste nascimento-existencial: quando teço o meu casulo, quando imprimo cores e texturas diferentes, quando me aproximo deste local que cuida de mim enquanto me transformo. Não quero ter pressa, aliás, quero sair dessa lógica de que estou sempre atrasada, quero perceber, sentir e viver o movimento com suas matizes e melodias quero o encontro que me leve ao reencontro comigo – quero me tornar uma pessoa melhor...” (“Aquela que Escuta” – participante)

O tema da Terceira Jornada diz respeito aos sentidos do corpo: sentidos, sentimentos e ação - percebo, sinto e ajo. O meticuloso exame que Cohen (1997) aplica a nossa percepção mostra que é através de nossos sentidos que recebemos informações de nosso ambiente interno (nós mesmos) e do nosso ambiente externo (os outros e o mundo). Aprendizagem é o processo pelo qual variamos nossa resposta para essa informação baseado no contexto de cada situação. O toque e o movimento são os primeiros sentidos a se desenvolverem. Eles estabelecem a linha de base para a futura percepção através do olfato, paladar, audição e visão. A boca é a primeira extremidade para segurar, soltar, medir, alcançar e retirar. Ela marca a fundação para os movimentos de outras extremidades (mãos, pés e cauda) e se desenvolve em relação aproximada com o nariz. O movimento da cabeça é iniciado pela boca e pelo nariz, os movimentos abaixo da cabeça são iniciados pelos ouvidos e olhos. O tônus auditivo e o tônus postural - a vibração e o movimento - são registrado pelo ouvido e são intimamente relacionados. A visão é dependente de vários sentidos, e por sua vez ajuda a integrar, formando padrões mais complexos. A percepção pode ser explorada em termos de inter-relação de diferentes sentidos e sua relação com o processo de desenvolvimento. Através da exploração do processo perceptivol, nós podemos expandir nossas escolhas em respostas a nós mesmos, aos outros e ao mundo no qual vivemos (COHEN, 1997, p. 6 e 7).

O contato com o mundo interior é a tarefa da Quarta Jornada. O contexto do movimento autêntico (ADLER, 2002) ensina que a descrição de uma experiência é distinta de uma fala sobre a experiência. Essa disciplina se dá em duas fases, relatadas a seguir:
Fase A: Solicito que a dançarina escolha um espaço na sala. Feche os olhos com a finalidade de expandir sua experiência de ouvir os níveis mais profundos de sua realidade sinestésica. Sua tarefa é responder a uma sensação, um impulso interior, uma energia vinda do inconsciente pessoal ou do inconsciente coletivo. A resposta para essa energia cria movimento que pode ser visível ou invisível para o observador. À medida que o trabalho se aprofunda, o movimento se torna mais organizado em padrões específicos, em partes específicas do corpo, dentro de ritmo e formas espaciais. Assim como a função da personalidade: mais emocional do que intuitiva, mais sensitiva que pensativa. Após cinco minutos, a experiência será concluída, chamarei seu nome e solicitarei que abra os seus olhos. Nós faremos um contato visual e a participante volta para o colchonete.

Fase B: Após se mover a participante pode: a) não falar e podemos ficar sentadas em silêncio; b) pode falar de sua chegada aqui e agora, qual foi o caminho percorrido de sua experiência original ao movimento; c) pode escolher encontrar palavras que são nascidas momento por momento, do próprio movimento. Se tentar esse caminho, recomendo que feche os olhos novamente; ao começar a descobrir palavras, que escolha algumas, presentes entre outras, tal como foram descobertas, ou pertencentes ao movimento quando estavam trabalhando no espaço. Mantendo o foco no interior e sentada em seu colchonete, solicito que fale com o verbo no tempo presente. O presente relembra-nos, prende-nos e encoraja-nos a permanecer no corpo, encarnadas, experiência em movimento, guiando-a até essa se tornar palavra. Tente lembrar o que o seu corpo está fazendo enquanto estava se movendo, e talvez a seqüência de movimento. Depois que falar, o observador lhe dirá, como testemunha, o que viu o seu corpo fazendo, incluindo a seqüência do seu movimento. Juntos articulam um mapa com nomes, lugares do corpo se movimentando no tempo e no espaço. Esse mapa é solo, a terra, o terreno essencial pelo qual as nossas experiências se tornam conhecidas.

“Ao descrever o movimento, “Brisa do Mar” diz: “Eu sinto os joelhos, flexiono os joelhos. Sinto os dedos dos pés. Mexo os quadris. Massageio a bunda, articulo as escápulas. Sacudo as escápulas. Flexiono e relaxo. Eu me abaixo. Sinto o meu corpo no chão. Eu me estendo e me encolho. Eu sinto o contato da perna ... suporte. Apóio os olhos (faz o gesto das mãos fechadas e punho apoiando os olhos) Sinto o cabelo (expressa movimentando os cabelos) Sinto coceira no cabelo. Toda... Aí eu torço para um lado, pro outro, flexionando os joelhos. Sinto a boca, começo a babar. Faço careta. Gosto de fazer careta. Acompanho com o quadril. Faço um som, movimento para frente, respiro, inspiro. Me abraço, me elevo. Desabraço. Final. Vai abrindo o corpo.” Comentários: pergunto como foi descrever o movimento no tempo presente. Responde: maior conexão entre mente e corpo. É como repetir abstratamente. Falo que notei que enquanto ela descrevia o próprio movimento ela fechava os olhos e por várias vezes repetia o movimento juntamente com a fala. Ela diz que ao fazer isso sentia mais a fluência do movimento, sentia-se guiada, sentia o movimento, a sensação.”

Na Quinta Jornada a ação criadora está em solicitar à dançarina que, em uma diagonal, vivencie a sua existência, do nascimento a sua morte. Nesse processo examina-se o tempo vivido como expressão e revelação criativa. Nesse momento ocorre uma profunda desconstrução e uma busca de sentido existencial. “Zum”, após realizar sua diagonal, comenta que vivenciou sentimentos de solidão, isolamento, sentiu que vivia como se a vida fosse uma tarefa. “Zum” chora. Comento que a vida é um dom. Na fenomenologia de Paul Tillich, a “coragem como um ato humano, como matéria de avaliação, é um conceito ético. Coragem como auto-afirmação do ser de alguém é um conceito ontológico. A coragem do ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua auto-afirmação essencial.” (1976:3).

Dançar a vida: a coragem de criar
A coragem é necessária para que a mulher possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e os seres da natureza. O psicanalista Rollo May, ao comentar a perspectiva ontológica da coragem em Paul Tillich, exemplifica que o filhote transforma-se em gato por instinto. Nessa criatura, natureza e ser são idênticos. Mas um homem ou uma mulher torna-se humano por vontade própria e por seu compromisso com essa escolha. Os seres humanos conseguem valor e dignidade pelas múltiplas decisões que tomam diariamente. Essas decisões exigem coragem. Contudo, um tipo de coragem que não se expresse em desmandos de violência e que não dependa de afirmar o poder egocêntrico sobre as outras pessoas, “mas uma nova forma de coragem corporal: o uso do corpo, não para o desenvolvimento exagerado de músculos, mas para o cultivo da sensibilidade”, sugere May (1982). Nas Sexta Jornada a participante é convidada a elaborar a própria existência ao recriar a diagonal da vida. Busca-se, nessa etapa, criar o movimento da memória para o gesto, de uma experiência de vida específica para a imagem de um movimento formal: coreografar a história de vida (Albright, 1997). Ao comentar esta jornada, “Zum” sentiu gratidão e leveza ao invés de perceber a vida como uma tarefa árdua. Despertou...

Conhecer o corpo vivido, vivenciar o corpo emocional, reconhecer as próprias expressões são os desafios da Sétima Jornada. Proposta a partir do Rasaboxes, um treinamento psicofísico e um instrumento de composição para a performance criado por Richard Schechner e desenvolvida por Michele Minnick (2003), que combina teorias clássicas indianas de emoção e interpretação, pesquisas contemporâneas da psicologia, neurociência e o princípio do teórico francês Antonin Artaud, que propõe que atores sejam “atletas da emoção”. Rasa, que em Sânscrito significa “sabor”, no contexto da performance se refere a oito emoções básicas, suas combinações e como as mesmas são saboreadas pelo público. As boxes (caixas) são quadrados desenhados por linhas no chão, e cada caixa contém uma Rasa. Através de improvisações estruturadas, o Rasaboxes oferece ao jogador a possibilidade de pesquisar suas próprias expressões corporais a partir das Rasas básicas, desenvolver sua habilidade de passar de uma Rasa para outra instantaneamente e de combiná-las de forma a criar estados emocionais bastante complexos.

A dança como revelação: a coragem de amar
As experiências da Oitava Jornada se dão a partir da vinculação da dança com o Sagrado ou seja, primeiramente conceber o corpo como templo, em segundo lugar vivenciar a dança sagrada. Em terceiro lugar, dançar para transformar a existência. Essas vivências levam para a Nona Jornada, quando a dançarina é convidada a percorrer o caminho sagrado - bem descrito- na canção popular: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo.” Após caminhar no espaço sagrado; meditar. Perceber assim a nossa kinesfera como nosso espaço sagrado. Isso é permitir que o nosso feminino aflore, tornando-nos mais receptivas e mais aptas a magnetizar e a receber, em estado silencioso (SAMS, 2000). Discernir com o auxílio de nossos sentidos qual é a nossa verdade pessoal. E assim, criar a própria dança, que não se trata apenas de uma expressão do ser e sim uma revelação do ser. Na Décima Jornada, ao narrar e dançar sua história, a dançarina celebra a existência. Atenta-se para o belo presente no feminino e no sagrado. Dançar a vida como experiência estética - a vida como obra de arte. Essa jornada que leva ao centro de si é uma jornada que nos leva ao encontro do Outro e isso exige um novo tipo de coragem: a de amar e ser amada.

Referências Bibliográficas
ADLER, Janet. Offering from the conscious body: the discipline of Authentic Movement. Rochester: Inner Traditions. 2003
ALBRIGHT, Ann Cooper. Choreographing difference: the body and identity in contemporary dance. New England: Wesleyan. 1997
COHEN, Bonnie Bainbridge. Sensing, Feeling and Action: the experiential anatomy of body-mind centering. Northampton: Contact. 1997.
FREIRE, Ida Mara. Interrogação e Intuição: corpo, diferença e arte na formação de professores. Projeto de Pesquisa. Florianópolis SC: UFSC/ CED. 2006.
LABAN, Rudolf. Danza Educativa moderna. Buenos Aires: Paidós. 1984.
MAY, Rollo. A coragem de criar. Trad. Aulyde Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
MINNICK, Michele Sheen. A dramaturgy of the flesh. Women e Performance, Issue 26, 13:2. 2003.
RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.
SAMS, Jamie. As cartas do caminho sagrado. Trad. Fábio Fernandes. Rio de Janeiro: Rocco. 2000.
TILLICH, Paul. A coragem de ser. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1976.

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