Escrituras inacabadas
Por Ida Mara Freire
“Mire e veja: o importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior”. É o que a vida, a prosa de Guimarães Rosa, a linguagem teatral e a plenitude do corpo me ensinam.
Na manhã do dia 19 de junho de 2008 anoto no caderno: Fui na pré-estréia da Marisa Naspolini, belo trabalho, uma inteireza, uma poesia, uma entrega, uma serenidade... maturidade – Simulacro de uma solidão... Ana Cristina Cesar. Espetáculo produzido por Áprika Cooperativa de Arte e dirigido por Jefferson Bittencourt. Na platéia do Teatro do SESC Prainha, estavam presentes familiares, amigos, estudantes, professores, produtores e artistas. Cada um com sua percepção. Olhares atentos à cenografia de Fernando Marés, que também assina o figurino juntamente com a atriz Marisa Naspolini. Ouvidos à escuta da trilha sonora conduzida por Jefferson Bittencourt. Uma mesa posta para dois, pratos, talheres, taças, um vinho, um convite para degustar os sentidos. O corpo receptivo para apreciação. Após a apresentação, a atriz e o diretor ouvem nossas impressões acerca da peça. Aspectos positivos e negativos foram ressaltados, assim como demarcados os pontos fortes e as fragilidades; comentários e crítica foram acolhidos, debatidos e, como em toda pré-estréia, a conversa continuou durante o coquetel.
A apreciação de um trabalho criativo pode ocorrer tanto durante o processo de criação quanto na apresentação do trabalho final. Nos dias atuais está cada vez mais delicado definir o fim de uma obra. E alguns artistas fazem suas proposições como “working in progress”, trabalho em andamento. Neste ensaio priorizo tecer meus comentários a respeito do processo de montagem da peça teatral Simulacro de uma solidão, com intuito de iluminar alguns momentos de imensa riqueza criativa ocultos à maior parte dos espectadores. Pontuo também que, diferente do conteúdo da crítica assinada por Aline Valim, publicada no caderno Cultura deste jornal no dia 13 de setembro de 2008 [que foca o espetáculo em si], meu texto se pautará numa reflexão oriunda da minha experiência como dançarina e pesquisadora acerca do processo criativo que pode ou não resultar num espetáculo bem acabado. Minha proposição é atentar para o corpo em cena como uma escritura inacabada.
É reconhecida em Florianópolis a experiência da atriz Marisa Naspolini na preparação corporal do ator. No seu trabalho como professora do curso de Arte Cênica na UDESC, examina o tema “análise do movimento e a construção do personagem” e incita os estudantes a buscar o não evidente, ao propor uma série de exercícios perceptivos. Em 2005, durante os meses de agosto e dezembro, Marisa Naspolini e eu nos propusemos a testemunhar o processo criativo uma da outra. Nesse trabalho nos encontrávamos semanalmente no Espaço do Corpo, Centro de Ciências da Educação da UFSC, e cada uma propunha atividade para outra. Observávamos uma e outra, trazíamos materiais e escrevíamos, líamos o que escrevíamos. Essas leituras e escrituras reportam a possibilidade de se perceber o corpo que dança se tornar um laboratório para experiências físicas, místicas e etc. Destarte, o corpo aberto para o fluxo da vida. O interesse no movimento e na linguagem nos levava e leva a indagar como o corpo que dança pode se inserir na escrita. Uma possível resposta está em investigar a diferença do corpo em cena. O corpo nunca é completamente natural ou textual. É possível pensar num corpo lido, terminado? A carne é escritura, uma escritura que nunca é lida por completo: está sempre aberta para ser lida, estudada, buscada, inventada. Isso sugere manter o corpo presente dentro do texto, pois toda realidade trabalha na carne, numa performance escrita que se move através das palavras para a dança.
O caminho do pensamento da atriz de levar Ana para o palco começou a ser percorrido na pesquisa em parcerias ora da dança ora do teatro, no ambiente acadêmico. A tristeza dos amigos do curso de Letras, enlutados pelo falecimento da musa, inebriou inesperadamente a celebração de aniversário de Marisa Naspolini em 1983. De modo que a morte de Ana entrelaçou com a vida de Marisa e brotou a linguagem no seu corpo como texto. “Os mortais são aqueles que podem ter a experiência da morte como morte. O animal não o pode. Mas o animal tampouco pode falar. A relação essencial entre morte e linguagem surge como num relâmpago, mas permanece impensada. Ela pode, contudo, dar-nos um indício relativo ao modo como a essência da linguagem nos reivindica para si e nos mantém desta forma junto de si, no caso de a morte pertencer originariamente àquilo que nos reivindica”, escreveu Martin Heidegger.
Em entrevista realizada em 14 de agosto de 2008, a atriz Marisa Naspolini falou-me sobre o seu projeto inicial, intitulado “Mulheres sós”, envolvendo sete mulheres, dentre elas Anaïs Nin, Clarice Lispector, Lya Luft, e por motivos de tempo-espaço o seu orientador do Curso de Mestrado, Milton de Andrade sugerira que ela escolhesse uma delas. A escolha foi Ana Cristina Cesar. Sua dissertação de mestrado intitulada, “Confissões do corpo: composição cênica e diálogo poético com a literatura de Ana Cristina César”, defendida em 2007, testemunha esse movimento.
O processo de criação do monólogo Simulacro de uma solidão prima pela atmosfera confessional. No entanto, a atriz e o diretor abrem mão de uma leitura autobiográfica e de uma vertente psicológica. Essa escolha parece-me revelar um cuidado relevante ao se escrever estudos biográficos, ou seja, não se deve querer saber mais que a própria personagem sabia, nem impor-lhe nenhum outro destino derivado de observações aparentemente superiores, senão o que ela própria conscientemente tivera ou experimentara. Evitar deliberadamente tentar desvendar os truques do outro e desejar saber ou pensar descobrir mais do que este sobre si mesmo, ou ainda do que estava disposto a revelar.
A escolha musical de Simulacro remete à sonoridade de Billie Holliday. Tal musicalidade compõe a cena como uma personagem coadjuvante, sensação travessa, quando a música parece suplantar a personagem, nossos vividos, lembranças que não querem silenciar, competem por atenção. Gostaríamos de estar a sós, tal como Ana no vagão, mas a presença ausente de Billie atravessa, um diálogo quase indesejável irrompe em nossa alma. O ser humano sofre, escrevem Maria Martoccia e Javiera Gutiérrez no livro intitulado Corpos Frágeis, Mulheres Poderosas, em que Billie Holliday figura como uma das nove mulheres – outras são Virginia Woolf, Frida Kahlo, Simone Weil – que expressaram, em corpo e obra, o luminoso e o escuro, a incógnita do ser em plenitude vital e em sofrimento, em beleza, sabedoria e dor. Essas mulheres sofreram na existência as vicissitudes próprias do fato de terem um corpo como âmbito único onde tudo acontece. No entanto, a dor cria uma cotidianidade própria, de possibilidades e impossibilidades, de vantagens e desvantagens, cria partituras inacabadas.
(...)Teremos que adiar a entrevista tenho espetáculo hoje à noite e minha voz não está muito boa... tenho que me cuidar...Escuto a voz de Marisa na caixa de mensagem telefônica nos dias em que a peça estava em cartaz no Teatro da Ubro. O espetáculo provoca uma empatia com o público por revelar algo comum: um processo investigativo sobre uma coragem de criar. A coragem é necessária para que a mulher possa ser e vir a ser. Paradoxal, a escritura a respeito do eu do outro pode fazer doer em si. A dor do outro nos escapa quando tentamos apreendê-la como representação. Mas, surpreendentemente, o outro nos brinda com sua dor quando menos esperamos, um relâmpago essencial nos faz reconhecer nossa humanidade. A dor do ser expressada na linguagem do corpo revela uma escrita que dói pelas margens. Os seres humanos conseguem valor e dignidade pelas múltiplas decisões que tomam diariamente. Essas decisões exigem coragem. Contudo, um tipo de coragem que não se expresse em desmandos de violência e que não dependa de afirmar o poder egocêntrico sobre as outras pessoas, mas uma nova forma de coragem corporal. O corpo, não para o desenvolvimento exagerado de músculos, mas para o cultivo da sensibilidade. O processo criativo do espetáculo Simulacro..., no qual a atriz Marisa Naspolini e seu diretor buscaram enredar uma história de amor presente nas correspondências, diários, cartas e postais, tem como fim não o suicídio, mas a possibilidade de um recomeço. Tal qual a potência de um poema no gesto da mão que dança ao escrevê-lo, a vida como uma página em aberto, nova, e o corpo em sua plenitude, como o de Ana Cristina Cesar, desvelam escrituras inacabadas...
*(professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC)
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