A esfera das possibilidades
Por Ida Mara Freire (*)
“A natureza é uma esfera espantosa, cujo centro está em toda a parte e a circunferência em nenhuma” escreveu Blaise Pascal (1623-1662). Ora Bolas! E o que é que a dança tem a ver com isso? Quem assistiu o espetáculo do Ateliê Companhia de Dança, pôde conferir as exclamações de adultos e crianças quando uma tal esfera apareceu no palco. Numa seleção requintada de jogos e elementos musicais Ora Bolas! foi concebido e dirigido com por Marta César e dançado com graciosidade por Izel Molinete, Mariana Molinos e Marina Beraldo.
As oficinas de dança folclórica, e de brincadeiras infantis realizadas, ora com as dançarinas, ora com as crianças de uma Escola Básica no Campeche, foram o cenário dos gestos e mímicas presentes no cotidiano infantil. A seqüência dos movimentos coreográficos surgiram da fusão das brincadeiras infantis, das lembranças das próprias dançarinas, e das técnicas da dança. A cenografia de Lucila Vilela e o figurino de Luciana Siqueira reportaram ao espectador uma atmosfera lúdica, repousada na iluminação onírica de Irani Apolinário. Lembrando-nos de nossa velha infância, um tempo de brincadeira nas ruas em noite enluarada.
As BOLAS de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza.
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa.
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
(Fernando Pessoa)
Embalada nas canções de Palavra Cantada e Cravo-da-terra, as brincadeiras dançadas despertaram recordações nos adultos e animaram o público infantil de idade bem variada. As crianças riam, com a percussão corporal, as caras e bocas do “monstro”, o uso inventivo dos brinquedos, tais como o bambolê, molas e a bola. Os maiores emitiam seu juízo de gosto em relação as letras das músicas, ao estilo das brincadeiras. A platéia participativa se reconhecia, no jogo da cabra-cega, no esconde-esconde, dentre outros. Notavelmente, tanto as crianças como os adultos, cada um ao seu modo, foram capturados pela brincadeira, ou melhor pela dança. Sim, a dança é uma brincadeira, afirma a dançarina Izel Molinete. Talvez, pelo o que há em comum entre o dançar e o brincar é o repetir.
Aprendemos com Walter Benjamin: a lei fundamental que, antes de todas as regras e leis particulares, rege a totalidade do mundo do brinquedo é a lei da repetição. Para a criança ela é a alma do jogo; que nada alegra-a mais do que o “mais uma vez”. Pois, não basta duas vezes, e sim sempre de novo, centenas, milhares de vezes. Em comparação com o adulto, que ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta a criar pra si o fato vivido, começa mais uma vez do início. Deste modo, a essência de brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, trata-se de transformar a experiência mais comovente em hábito.
Ora bolas! foi criado especificamente para um público infantil, trata-se de um espetáculo divertido, e acima de tudo educativo. As dançarinas Mariana Molinos e Marina Beraldo, em entrevista comentaram que a dança contemporânea é uma experiência recente, e exige uma aprendizagem para ser compreendida. As dançarinas explicitaram que para se compor a dança para crianças faz-se necessário ter contato com as mesmas e com o universo infantil desde do início do processo de criação, esta proximidade e identificação com elas, permite que se brinque o jogo que crianças jogam e ao mesmo tempo incluí-las na brincadeira, isso é um convite para se envolver com o espetáculo. Deste modo, apresenta-se um diferencial para apreciação da dança e a formação de platéia: uma dança feita com crianças e para as crianças.
Na tentativa de compreender o entendimento que se tem da dança, Graham McFee, descreve a natureza da dança elegendo quatro grandes categorias: primeira, dança como ação, segunda, dança como arte, terceira, dança como uma arte de execução, e uma última, dança como um objeto de compreensão. Ao propor a dança como arte, McFee, questiona: Afinal, o que faz com que uma seqüência de movimentos seja dança e não ginástica? A resposta pode ser identificada pelo contexto onde essa é executada, e por seu caráter artístico. As crianças quando educadas para isso sabem muito bem perceber a diferença, é o que essa experiência numa escola pública na Inglaterra exemplifica. Depois de assistir à apresentação de um grupo de 24 crianças entre 10 e 11 anos de idade, estimuladas pelo professor da classe, que concebeu e dirigiu a coreografia, as crianças descreveram seu processo com a dança. Então, indaguei-as sobre o que elas apreciavam ao dançar, uma menina respondeu que quando ela dançava muitos sentimentos vinham à tona, e que era muito diferente quando ela fazia um exercício físico.
A coreógrafa Marta César dirigiu Ora Bolas! com vistas ao público escolar, as crianças, seus professores e o arte educador, num formato disponível para ser exibido nos pátios escolares. Apresenta um trabalho criativo, desafiante e respeitoso ao público infantil. Chama a nossa atenção sobre o ensino da dança nas escolas. O leitor pode questionar sobre qual o sentido da dança no currículo, quando vivemos no país do carnaval. Será que temos que estruturar, esquematizar passos, marchar? Que dança deve ser ensinada nas escolas?
A educadora e dançarina Isabel Marques percebe que hoje, a “dança criativa” tem adotado algumas práticas educativas conceitualmente semelhantes às de que serve o ensino tradicional da dança Assim sendo, se na dança tradicional o conteúdo é o centro isolado do processo; na “dança criativa” esse centro é somente o aluno. Em ambos os caso, ao aluno não é permitido nem incentivado que problematize, dialogue e interaja com o mundo concreto e real. A pedagogia tradicional para o ensino da dança, e mesmo a pedagogia da “dança criativa”, contribuem para manter não apenas o mundo da dança, mas o mundo geral tal como são. No entanto, as enumeras realidades vividas percebidas e imaginadas pelas crianças do mundo contemporâneo tecidas na rede de relações multifacetadas entre seus corpos, movimentos, dança, família e sociedade poderiam, ser direta e explicitamente trabalhadas em sala de aula por meio dos conteúdos específicos da dança.
A resposta do público infantil ao Ora Bolas! demonstra um modo peculiar de se prestar atenção. O foco das crianças se distinguia a cada momento: o interesse pelo programa, distribuído na bilheteria do teatro, desperta a curiosidade: “Quebra cabeça, dobra o joelho, batuca no peito, estala no dedo se joga de jeito e vira um super herói...” Enquanto a dança acontece, as meninas e os meninos imaginam juntos, estão muito concentrados, na hora que acham engraçados todos riem, tem momentos que se sabe que estão prestando atenção de tão quietinhos que estão.
A singularidade da experiência da dança na infância é relatada pelo coreógrafo Klaus Vianna (1928-1992): “Peguei exatamente a turma infantil – os professores não gostavam muito dessa aula- e, aos poucos, o trabalho foi dando origem a uma relação profunda entre mim e as crianças. Bastava dar um estímulo e pronto, elas reagiam, criavam, brincavam, riam. Uma vez por mês eu propunha que os pais assistissem às aulas com os filhos, para que vissem a espontaneidade das crianças. Mas logo descobri que aquele convite era contraproducente: as crianças tornavam-se inibidas e ficava claro que aquela relação afetuosa e companheira da sala de aula não existia em casa. Dessa forma, em pouco tempo desisti dos convites aos pais. Mas não desisti das aulas: fiquei com um mesmo grupo de meninas dos oito aos treze, quatorze anos, e a proposta foi sempre uma aula lúdica. Falava do corpo, das funções dos ossos, brincávamos de roda, pedia para que elas dançassem o que gostavam dançar nas festas, lia histórias. Acreditava, nessa época, que assim que se estimula um ser criativo.”
As integrantes do Ateliê Companhia de Dança além de presentear o público infantil com seu belo e divertido Ora Bolas! expressam um ato de amor às crianças, que a partir do momento, que se tornaram sujeitos de direitos, foram abandonadas no mundo onde todos se esquecem que há tempo para tudo, principalmente de brincar.
(*) Professora do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Diretora do Potlach Grupo de Dança www.ced.ufsc.br/alteritas
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