quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
O Silêncio fala, quando as palavras já não podem.
“De repente, percebi que poderia entender o que ela queria me dizer se ela se virasse e olhasse nos meus olhos." Samite
Tunula Eno ou Eyes that Speak, como a conheci em uma roda de Dança Circular, rompeu o meu sono após um dia de degustação das estéticas sul-africanas. Sorvendo cores, letras, imagens, movimentos e sensibilidades de tantos autores e atores que singularmente sintetizariam a beleza apreendida no silêncio, meu corpo, entretanto, ainda não estava decidido. A decisão ancorada no corpo que se faz sentir num fluxo quente, consistente e contínuo, onde a hesitação não encontra espaço. Mas assim que Eyes that Speak invadiu minha mente como o outro não convidado, meu corpo agradeceu pelo prazer do inesperado revisitado: o prazer de poder narrar uma história que havia me tocado. O narrador em mim foi despertado pelo narrador em Samite e minha escolha se dá na percepção do poder de resignificação que é contar sua vida e na dignidade que reside em contá-la inteira. (BENJAMIN, 2003, p.240)
Tunula Eno foi composta por Samite Mulondo (Sæm ē tay ) para sua esposa, Joan, durante o seu último ano de luta contra um câncer no cérebro e está presente no álbum do mesmo nome, lançado em 2003. Cantada na sua língua mãe, a canção alude a uma canção de ninar sul-africana e narra a experiência do outro através do olhar, no momento em que a doença rouba de Joan a capacidade de falar. O olho "escuta, toca, sente e degusta." (PONTALLIS apud CARMO, 2002, p.64)
Mas, apreender o invisível dessa expressão artística é impossível sem resgatar um pouco dos vividos do autor. Nascido em Uganda, durante o regime de Idi Amin Dada, Samite tornou-se refugiado no Quênia, um dos países onde atualmente desenvolve um projeto de redescoberta do humano e de cura através da música em campos de refugiados, chamado Musicians for World Harmony. E foi nesse contexto de ser ele mesmo um refugiado, que a música encontrou o seu espaço como resgate de suas raízes. Conta-se que seu avô costumava levá-lo a cerimônias de casamento quando então ele poderia ouvir as músicas e os sons tradicionais de sua cultura. O próprio Samite afirma que na gênese do seu repertório está presente a necessidade de escapar da morte e da violência. "Há pois uma relação circular da obra à vida e da vida à obra." (MERLEAU-PONTY, 1990, p.312)
A intercorporeidade entre vida e obra, a trama tecida com esses dois fios, que já não podem mais ser diferenciados, imprimem à canção um sentido carregado de espiritualidade. O fim próximo de sua esposa é cantado, narrado e ritualizado como possibilidades de restauração e imanência. A Morte, que normalmente espreita, ameaça, desafia, alivia e redime torna-se o outro visível. Aquele com quem eu outrora era uno, ameaça-me com o véu do esquecimento e com a sua inexistência. Entretanto, é da dor de estar cindido entre ambos, que um terceiro pode surgir: o Amor. “Quando você sabe que alguém que você ama está prestes a morrer, tudo o que você pode fazer é amar.” Samite
Referências Bibliográficas
CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty: uma introdução. São Paulo: Educ, 2002.
MERLEAU-PONTY, M. Merleau-Ponty na Sorbonne: resumo de cursos. Campinas, SP: Papirus, 1990.
http://www.samite.com/
http://www.musiciansforworldharmony.org/
http://www.rockpaperscissors.biz/index.cfm/fuseaction/current.articles_detail/project_id/257/article_id/5986.cfm
Texto e apresentação elaborados para a disciplina: Seminário Especial : Estéticas do Silêncio: Alteridade, Arte e Educação, ministrada pela professora Drª Ida Mara Freire, por Ana Paula Pires, mestranda em Educação (UFSC), linha: Educação e Comunicação. Formada em Arteterapia pelo Incorporar-te/RJ e em Dança Circular Sagrada pela Fundação Findhorn, Escócia. Arteterapeuta na Marinha do Brasil e focalizadora do curso de pós-graduação lato-senso em Arteterapia pelo ICEP/USJ. anapires10@yahoo.com.br
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